(Narciso – Caravaggio)
“puluis et umbra sumus – somos pó e sombra” ( Horácio – Ode)
O mito de Narciso é quase de domínio comum, mas vamos, com a imensa ajuda de um texto de Junito de Souza Brandão, procurar ir um pouco além. Conforme o mestre, seguiremos seus passos, a palavra Narciso, tem as seguintes origens:
“NARCISO, em grego Νάρκισσος(Nárkissos). Comecemos pela etimologia. Nárkissos, o nosso Narciso, não e palavra grega. Talvez se trate de um empréstimo mediterrâneo, quem sabe da ilha de Creta. De qualquer forma, do ponto de vista etimológico, temos em Νάρκισσος (Nárkissos) o elemento νάρκη (nárke), que, em grego, significa “entorpecimento, torpor”, cuja base deve ser o indo-europeu (s)nerg, “encarquilhar, estiolar, morrer”. Com o sentido de torpor, nárke já é empregado por Aristófanes, Vespas, 713. Relacionando-se, depois, com a flor narciso, que era tida por estupefaciente, nárke será a base etimológica de nossa palavra narcótico e toda uma vasta família com o elemento narc-.
Sob este enfoque, como demonstrou Murray Stein84, várias associações se poderiam fazer com a flor narciso: ela é “bonita e inútil”; fenece, após uma vida muito breve; é “estéril”; tem um “perfume soporífero” e é venenosa, tal qual o jovem Narciso, que, carente de virtudes masculinas, é estéril, inútil e venenoso”.
O Mito
Narciso nasceu do enlace forçado de Cefiso e um ninfa, Liríope, um estupro, que leva a uma gravidez indesejada, sofrida, mas que no fim nasce uma criança, cuja beleza ultrapassa à dos mortais e imortais. O que em si, já é um problema. A extrema beleza é algo que na cultura grega assusta, pois ousa a competir com os deuses, assim ultrapassando seu métron ( medida que lhe cabe na vida), como nos conta Junito:
“É que também a beleza era uma outorga do divino: constituía, portanto, uma “démesure”, a ultrapassagem do métron, ufanando-se alguém de um dom que não lhe pertencia. Némesis, a justiça distributiva e, por isso mesmo, a vingadora da injustiça praticada, estava sempre atenta e pronta para punir os culpados. Não importa: Narciso seria desejado pelas deusas, pelas ninfas e pelas jovens da Grécia inteira!”
Liríope, sua mãe, apesar do contentamento com a beleza do filho, fica preocupada com os possíveis castigos que lhe será imposta. Pede ajuda ao grande profeta Tirésias, para que este lhe dissesse quanto anos de vida terá seu filho, Narciso. A resposta é simples: “si non se uiderit”, “se ele não se vir” (Ovídio – Metamorfoses). O menino cresce e se cumpre a profecia, sua imensa beleza atrai a atenção de deus e jovens de toda Grécia, mas este simplesmente ignora.
(Eco – Alexandre Cabanel)
A ninfa Eco, vendo Narciso numa caçada nos bosques, fica perdidamente apaixonada por ele. Um breve parêntese, Eco era uma ninfa muito tagarela, que Zeus espertamente levou ao Olimpo, para que distraísse sua esposa, a deusa Hera, com suas conversar. Assim, Zeus, partia para o mundo para suas aventuras amorosas. Hera, não percebera, de início, e gostava da companhia da ninfa. Porém, ao entender o ardil do marido, puniu Eco fazendo com que ela na falasse mais, apenas repetisse às últimas palavras do seu interlocutor.
Ovídio, numa bela passagem, publica em versos que se repetem o primeiro encontro de Narciso e Eco:
“De o pôr por obra; da espessura rompe,
Vem de braços abertos, anelando,
Tão suspirado objeto, alfim colhê-lo.
Ele foge; fugindo, ilude o abraço,
E Antes, diz, morrerei, que amor nos una.
Ela, imóvel, co’a vista o vai seguindo,
E, ao que ouviu, só responde: Amor nos una“
(Ovídio: Metamorfoses . Tradução de Antônio Feliciano de Castilho.)
Eco, como as demais pretendentes, foi repelida por Narciso. Sofrendo muito, então ela se tornou estática, não mais se alimentando acabou definhando, transformando-se num rochedo, que repete sempre as palavras de quem lhe fala. As demais Ninfas, revoltadas com o desprezo de Narciso, pedem a Nêmesis que vingue a ninfa. Esta, condena Narciso a amar um amor impossível.
Tempos depois , noutro verão, Narciso estava no bosque e com muita sede, aproxima-se de uma fonte, Téspias, que era de uma pureza jamais vista, suas águas claras em contrastes com os arbustos pareciam um espelho. Ele começa a saciar sua sede, quando de repente olha aquela imagem e se imobiliza, nunca vira tanta beleza, se curva a admirar tão linda imagem, prostrando-se diante da fonte tenta se agarrar ao que vê. Nos versos de Ovídio:
“Deitou-se e tentando matar a sede,
Outra mais forte achou. Enquanto bebia,
Viu-se na água e ficou embevecido com a própria imagem.
Julga corpo, o que é sombra, e a sombra adora.
Extasiado diante de si mesmo, sem mover-se do lugar
O rosto fixo, Narciso parece uma estátua de mármore de Paros.
Deitado, contempla dois astros: seus olhos e seus cabelos,
Dignos de Baco, dignos também de Apolo;
Suas faces ainda imberbes, seu pescoço de marfim,
A boca encantadora,o leve rubor que lhe colore a nívea pele.
Admira tudo quanto admiram nele.
Em sua ingenuidade deseja a si mesmo.
A si próprio exalta e louva. Inspira ele mesmo os ardores sente.
É uma chama que a si própria alimenta.
Quantos beijos lançados às ondas enganadoras!”
A maldição fez com que, mesmo no Hades ( Inferno), Narciso, busque a si, nas águas turvas do rio Estige.
Significados do Mito
Estudar um mito, grego é minha maior concentração, não é uma busca de uma verdade, ou uma
simples curiosidade etérea, antes disto é entender nuances sobre nós mesmos, sobre nossos arquétipos e nossa psiquê. A vastidão de interpretações “seguras” sobre os mitos, são fontes confusas que mais atrapalham, do que ajudam a conhecer o mito.
Junito nos traz várias visões sobre o mito, dando uma noção de como é amplo e complexo o ato de entender um mito, vou apresentar algumas destas ricas elaborações. Todas citações são de Junito, no magnífico Mitologia Grega, Comecemo por Dr Carlos Byington:
“Se Narciso, argumentou Byington, vai ser um símbolo central de permanência em si mesmo, Eco, ao revés, traduz a problemática da vivência de seu oposto. Para se compreender o mito, é preciso frisar que Narciso e Eco estão em relação dialética de opostos complementares, não só de masculino e feminino, mas sobretudo de sujeito e objeto, de algo que permanece em si mesmo e de algo que permanece no outro”.
Claro estar que Narciso ama a si, sujeito e objeto, se localizam em si. Eco tenta atraí-lo e fracassa, não suportando sua dor se esvaí, definha. Narciso, quando se vê passa a cultuar o objeto, sem saber que se trata do próprio sujeito, fechando em si em reflexão, paixão. Jung nos socorre, definindo “reflexão”:
“O termo reflexão não deve ser entendido como simples ato de pensar, mas como uma atitude. A reflexão é uma atitude de prudência da liberdade humana, face às necessidades das leis da natureza. Como bem o indica a palavra ‘reflexio’, isto é, ‘inclinação para trás’, a reflexão é um ato espiritual de sentido contrário ao desenvolvimento natural; isto é, um deter-se, procurar lembrar-se do que foi visto, colocar-se em relação a um confronto com aquilo que acaba de ser presenciado. A reflexão, por conseguinte, deve ser entendida como uma tomada de consciência”.
Portanto como observa e nos alerta Junito:
“O perigo que oferece o aprofundar-se em demasia na linha narcísica de alma e amor-reflexão está não somente na autocontenção, no solipcismo, no incesto intrapsíquico, mas também no suicídio. De modo explícito, ao recusar comer, Narciso se suicidou. Esse suicídio anoxérico foi motivado pela desilusão: a imagem querida e amada, que surge no reflexo, não possui equivalência no mundo real e objetivo”.
Diz mais sobre a interpretação dos neoplatônicos:
“Se narcisismo pode ser compreendido como uma repulsa, uma rejeição do mundo-objeto e da relação sujeito-objeto, os neoplatônicos viram em Narciso um símbolo do oposto: uma espécie de fascinação sem esperança, como se fora um elo preso ao mundo da matéria e das aparências”.
Sendo a última questão suscitada no Mito de Narciso a questão do Espelho(ou tabu do reflexo) e da sombra(umbra), que também é amplamente debatida em várias culturas. Platão no parte do mito das cavernas definindo as sombras como “as imagens das ideias verdadeiras“. Sendo o espelho o lugar que colhemos, o que somos e o que não somos.
Sim, no espelho colhemos o que somos e o que não somos. Mas refiro-me ao reflexo de nossos atos em relação ao mundo e às pessoas. Observo também que os egoístas embora façam sofrer, também sofrem e muito. Quando compartilhamos nossas alegrias e vitórias, parece que elas dobram de tamanho…Ainda não conheci alguém que se contentasse só consigo mesmo. Talvez essa pessoa nem mesmo exista.
Nossa, Arnóbio, cada dia estou aprendendo mais com você sobre a Grécia. Para falar a verdade, sempre me interessei muito por Roma antiga, deixando a Grécia de lado (excetuando Platão, que sempre gostei de ler).Agora, graças ao seu blog, tenho me interessado muito por sua cultura, paisagens, economia, etc.Só tenho que te agradecer.
Voltando para complementar o comentário, com “Os degraus”
do Mário Quintana, que acho que vem a calhar para este post:
“OS DEGRAUS
Não desças os degraus do sonho
Para não despertar os monstros.
Não subas aos sótãos – onde
Os deuses, por trás das suas máscaras,
Ocultam o próprio enigma.
Não desças, não subas, fica.
O mistério está é na tua vida!
E é um sonho louco este nosso mundo…”