Esta semana estava lembrando de como gostava do Bexiga, acho que deve ter sido porque sábado almocei com amigos numa pequena cantina, a 14 de Julho, ambiente aconchegante, bom papo, uma volta ao passado. Um bairro que frequentava tanto, as cantinas, os bares, as padarias. Trabalhei muitos anos ali na Rua dos Ingleses, então tudo era muito perto, almoço naquelas cantinas centenárias, os donos de quarta ou quinta geração dos que aqui aportaram. O Capuano com seu molho secular e o papo dos velhos oriundis.
Passei pelas ruas estreitas do bairro relembrei, mas o que me deu mesmo muita saudade foi dos teatros, que tanto frequentei, o mais marcante o Teatro Oficina, do mestre maior do teatro paulistano, José Celso Martinez Côrrea, naquelas alamedas se fazia o mais criativo espetáculo de São Paulo, como me recordo de peças que ali vi, a intensa interativa, a representa original, orgiástica, o verdadeiro Dionísio e seus mistérios em plena comunhão. A genialidade de José Celso contagiava qualquer espectador, que virava um ator, se assim o desejasse.
As imagens da peça Ham-Let, assim mesmo separada, de 1993, com mais de 6 horas de duração, foi a mais marcante experiência que tive com a obra de Shakespeare, a originalidade, o elenco, encabeçado por José Celso, Marcelo Drummond, tinha ainda um desconhecido Alexandre Borges e Julia Lemmertz, a jovem atriz do Grupo do Oficina Uzyna Uzona, Leona Cavalli numa magistral interpretação de Ofélia. A representação com texto praticamente integral, mas com uma dose de teatro dionísico que dava um clima sensual, quase erótico à peça. Apesar de longo o espetáculo, ninguém cansava de tão bom e mágico. As músicas, mistura de rock, bossa nova e samba, animavam a platéia lotada e participativa.
Quando saí de lá, naquela época, pensei que jamais veria algo tão louco e profundo, uma adaptação totalmente diferente do que já tinha imaginado, tinha visto, um pouco antes a maravilhosa peça “Sonhos de uma Noite de verão”, do grupo Ornitorrinco, que tanto me impressionara. Mas Hamlet sempre foi especial para mim, a peça que conheço tão bem, e ver o que José Celso fez foi muito impactante, fora do comum, todos os amigos que foram ver, saíram da peça fora de si, é difícil dizer o real sentimento que a peça produziu em nós.
Dois anos depois o Oficina encenou As Bacantes, de Eurípedes, mais uma vez nos surpreendeu, com uma visão revolucionária, transformou a peça numa Ópera Carnavalesca, música, encenação, num grande ritual que vai mais fundo no espírito à Baco, do Deus do vinho, do mel, sêmen, prazer e diversão, os mistérios de Elêusis encontrou na passarela central do Teatro a mais lúdica das interpretações. Mitologia e Teatro Grego misturado com Macumba e Tropicalismo. A platéia em transe via as belas bancantes em êxtase, palavra grega que bem define o papel: “Sair de si”, por gozo e prazer. Embriagadas pelo vinho, das uvas de Dionísio e seu culto secreto e sensual.
Passar ali, por perto do Teatro Oficina, lembrar de sua Ágora, a luta de José Celso, por transformar aquela parte da cidade, tão abandonada e decadente, em centro de cultura, celebrar a vida, as viagens e as fantasias, que o seu teatro nos faz fazer. O dionísico diretor é uma imagem viva e forte no meio daquele bairro, outrora boêmio, rico e vivaz. Quem sabe numa administração diferente voltemos a ter um novo Bexiga, longe da especulação imobiliária, mas renascido por figuras como Jose Celso, é sonho, mas gosto de sonhar. O Mestre que me fez sonhar, só posso sonhar junto e agradecer, por tudo que nos deu.