Em julho de 1989 saí de Fortaleza, passei por Goiânia e no meio de agosto cheguei a São Paulo, era um sonho morar aqui, desde quando vim a primeira vez em 1986, conforme já contei aqui: São Paulo – Quando o amor acontece. Aquele final de década, uma das mais agitadas da política, fim da ditadura, campanha das Diretas, a constituinte, as novas liberdades, este ambiente encontrou na Folha de S. Paulo seu grande veículo, que renasceu depois de ter apoiado, política e materialmente a Ditadura.
Lembro que era uma coisa maravilhosa você receber e ler a Folha de S. Paulo, seus cadernos, os colunistas antenados, os debates que provocava, não se limitava à política, ia muito além, com cultura, esportes. Fazia parte de qualquer movimento a leitura e comentários sobre o jornal, no seio da esquerda era muito respeitada, mesmo com as diferenças, pró-tucana, ela tinha um conteúdo plural, o que garantia a presença de colunistas mais identificados com a esquerda militante. Abria suas páginas para as divergências e polêmicas, em todos os setores da sociedade, cultura e política.
Além da folha, era leitura corrente, pelo menos minha, da Gazeta Mercantil, um periódico dedicado a Economia, um jornal muito bem escrito, mais conservador, mas com conteúdo riquíssimo sobre o funcionamento da economia brasileira. As matérias muito bem elaboradas, com dados, informes, analises, uma profundidade que ajudava a compreender mais amiúde o jogo do poder. Raramente se via uma matéria da Gazeta que não tivesse uma argumentação sólida, buscando detalhar o tema, sem jamais conceder à maneirismos ou facilidades, realmente escreviam com muita precisão, mesmo quando discordava do texto.
O Estadão vivia uma crise de identidade, perdera o “bonde da história” com seu conservadorismo, era um jornal muito identificado, continua ainda hoje, com o pensamento mais conservador e de uma elite quatrocentona que usufruiu da ditadura, mas mantinha um rigor do liberalismo. Jornal era “pesado”, árido, senhorial, chegava a ser sectária em não conceder qualquer espaço à esquerda que crescia, mais ainda o movimento que derrubou a ditadura. Perdeu o momento do diálogo com a sociedade que pedia mudanças, mesmo tendo sido muito atingido pela ditadura. Naquela época não era lido no seio da esquerda, até por preconceito mesmo. O que gostava, quando lia, era os textos mais densos, um rigor linguístico, sempre deixando claro seu conservadorismo.
Aos domingos, comprava os dois Folha e Estadão, a Gazeta não publicava, mas guardava os cadernos especiais do fim de semana. Então voltava da banca carregado, lia caderno a caderno, comparando os dois jornalões, suas editorias, a Folha mais ágil, mas sem cair no besteirol, a do Estadão mais densa. Antes do almoço, lá pelas 3, 4 horas da tarde, estava com as ideias na cabeça, os debates, até os filmes que veria em mente. Os jornais eram fundamentais para definir show, filme, peça ou espetáculo para assistir. Ambos tinha cadernos especiais de cinema e teatro, as polêmicas entre artistas era um tempero a mais.
A grande virada dos jornais, em particular da Folha de S. paulo, sem dúvida foi a queda do muro de Berlim, fundamental para que ela abandonasse de vez sua linha plural, por volta de 1992, o jornal nem era sombra do que fora nos anos 80. A reforma visual que a Folha fez nesta época, piorou a qualidade do jornal, além de se tornar mais conservador, se tornou idiota, a forma de tratar o leitor como imbecil, nos famosos: “para você entender”. Além do esvaziamento dos cadernos, editorias de esportes, cultura foram os que mais perderam.
O conteúdo editorial, a compra da tese do pensamento único, rebaixou sobremaneira o jornal, os debates passaram a ser controlados, a voz à esquerda foi sendo calada paulatinamente, ainda com alguma identidade na questão do “fora collor”, depois dali o jornal virou um mero instrumento do PSDB. O apoio velado a candidatura de FHC, tanto em 1994 como 1998, a forma como cobriu o governo Covas, até de Maluf, foram indicadores deste caminho sem volta. Ruiu de vez em 2002 com sua intensa campanha a favor de Serra, uma espécie de “filho” de Frias. O ódio devotado pela família Frias a Lula, seria o indício de como cobriria seu governo.
O Estadão se “modernizou” na segunda metade dos anos 90, mudou não apenas visualmente, mas seu conteúdo “pesado” foi substituído por algo mais leve, mas seu conservadorismo tomou doses cavalares de coragem de ser abertamente anti-democrático. Jornal que já era identificado pelo liberalismo, mergulhou no fernandimo neoliberal, de forma radical, defendendo as teses de forma cega. Apoiou incondicionalmente todas as candidaturas tucanas, tanto em São Paulo, quanto nacionalmente, além de ser opositor diuturno do Governo Lula/Dilma.
A qualidade do Estadão caiu sensivelmente, as editorias de Cultura, Esportes, forma, a exemplo da Folha, esvaziadas, passaram a viver de eventos. Mesmo o caderno central teve seu conteúdo empobrecido, hoje, o único caderno que resiste com alguma qualidade superior é o de Economia, mas também se ressente desta guinada. O muro de Berlim não influenciou o pensamento, já conservador, do Estadão, mas, com certeza, abriu uma janela para que exercesse seu conservadorismo sem receio algum.
Outro aspecto no esvaziamento de ambos, Estadão e Folha de SP, foi o advento da internet, os jornais perderam amplamente a capacidade de influenciar um setor mais crítico, pois a linha de pensamento único, mais ainda, conservador, não se coaduna com a rapidez e multiplicidade de ideias e pensamentos que o meio digital abriu, funcionou assim como a “Caixa de Pandora” para os jornalões, que vivem uma acentuada crise de credibilidade, de perda de leitores e de peso político. Mesmo com oposição cerrada deles ao Governo Lula, o ex-presidente saiu com aprovação de 87%, o que jamais aconteceria nos anos 80 e, mesmo nos iniciais de 90.
Deixei de assinar e ler regularmente os dois jornais, eventualmente, os leio, em particular na internet, mas, confesso, sinto saudade do cheiro da tinta, das folhas finas, das grandes matérias, da opiniões, que mesmo discordando, faziam parte do debate, do cotidiano intelectual. Certo que o fenômeno da internet pegou os jornais do mundo inteiro, mas esta linha do pensamento único, do conservadorismo exacerbado os matou, pelo menos pra mim, definitivamente. Aos domingos sinto a falta, mas que rapidamente é esquecida quando penso na contrariedade que seria digeri-los, na má qualidade dos colunistas e de seus editoriais.
Tem um artigo que publiquei aqui http://tecedora.blogspot.com.br/2011/12/licoes-do-passado.html
Que mostra os jornais na década de 80 e veja que tudo não era bem assim
Eduardo tem razão, não era bem assim, mas o legado do Claudio Abramo ainda pesava, os grandes repórteres ainda estavam atuando. Era BEM melhor do que o nada nojento de hoje. Sinto falta demais do antigo JB, meu deus…
Foi-se o tempo, prezado Arnóbio.
Hoje parte dos jornalistas são antenados como os robôs, e dirigidos pelos interesses escusos de seus patrões.
Pena. Por isso não compro jornais,colaborando desse modo a preservação ambiental e notadamente com a minha preservação cerebral.
Brilhante, Arnóbio!!! Há muito tempo não leio os vetustos “jornalões”. Havia divergência, mas havia mais espaço. Lembro do ‘Folhetim’ da FSP e do espaço que ele proporcionava. Havia página literária densa no Estadão. Também gostava do JB. Dava pra ler jornal. Hoje não dá mais. Estão cada vez mais parecidos com a escória da Veja. Abração. Silas
Amigo Arnobio, vc é mais novinho no início dos 80 quando da campanha para gov em 82 era pela FSP que eu sabia o que estava e passando no Rio (No Rio a imprensa se dividiu entre MDB e PDS, JB só aderiu ao Brizola em setembro) durante o final da ditadura e o gov Sarney era uma beleza ler esses dois jornais, mas no início de 89 eles deixaram cair a mascara. Nunca mais acreditei na grande imprensa.
Abs
Que texto maravilhoso Arnóbio!! Você disse tudo! Lembro aqui em Fortaleza a nossa procura e espera pela Folha!! Tanta coisa de qualidade…tudo realmente, se foi…Quantas coisas ruins são publicadas atualmente!!!