
“Vou desfazer a caligem que os olhos brilhantes te cobre
que distinguir facilmente consigas os deuses e os homens.
Não te aventures jamais a lutar contra os deuses eternos”
(Ilíada, V, 127-129, Homero)
Os últimos dias tenho me sentido como Estadão nos anos de chumbo, apenas pensando nos Lusíadas, aliás, como escrevi antes aqui, A Literatura nos Salvará., apenas ela. inclusive de nós mesmo, de nossa natureza bárbara e cruel, assim repito, o que ali disse:
“Todos os momentos críticos de minha vida, os meus melhores amigos, foram os livros, suas histórias, suas graças. As saídas apontadas estão ali, pois vieram antes, nos mostram aquela trilha seguida, os enfrentamentos e embates que foram vencidos, ou perdidos, permitindo que saibamos onde podemos pisar mais firmes.
Por mais modernos ou modernosos que nos achamos ser, nada supera o que foi dito, a verdadeira bússola humana, é o saber.”
Há um hiato, uma fenda, entre o espaço público e o espaço privado que um (a) cidadão (ã) ocupa, que é a questão humana.
É essa réstia de sol que ilumina e que nos relembra o que há de humano em nós e que pode ir além das questões políticas, das disputas e nos faz ver o que poderia (ou deveria) ser tolerado nos limites da vida, segundo essa compreensão humanística. A literatura é repleta de exemplos de como se dão esses hiatos de sentimentos humanos, para além dos embates e lutas, inimigos e adversários. Na majestosa Ilíada, Príamo chora aos pés de Aquiles, o poderoso Rei de Troia se humilha perante o algoz do seu filho, mas o faz pelo direito de Heitor ter seu enterro com as honras dos heróis. No Blade Runner, Roy, caça o caçador de androides, Deckard, que acabara de matar sua namorada, porém, naquele último instante, ele salva o odioso inimigo, uma luz na escuridão. A reconciliação de Próspero com o mundo, na Tempestade, uma metáfora de nossas vidas incertas.
A intimidade com os clássicos não é mero exercício de vaidade pessoal, é, sempre foi, a forma de entender o mundo que nos cerca, não nos limitando ao que fazemos profissionalmente. A lógica, filosofia e método, foram essenciais para minha longa carreira no mundo das telecomunicações, para soluções de problemas complexos de software, da visão ampla de um sistema, não importando a linguagem dos códigos ali escritos. Entretanto, a literatura, é primordialmente prazer, tesão, muito além do aspecto instrumental, ou que se use como ferramenta nos mais variados campos do conhecimento, ler é sonhar, é viajar e conhecer os aspectos mais íntimos da humanidade. Escrever é o seu par, nem sempre se une os dois, pois é muito mais fácil ler do que escrever.
Quando se tolhe essa liberdade de pensar e se expressar, é nos ferir mortalmente.
Diante de todos os males que nos atingiram ultimamente, aqui não estou me referir aos meus fantasmas aqueles que doem na alma e de família. Declaro, sem embargo que, nesses últimos anos, o ato de viver com dignidade e esperança é um Ato de Rebeldia!
Quase sempre me pergunto por que devo continuar a escrever, ou melhor, para quê devo escrever, claro que sem me preocupar se há leitores, se o que venha a publicar trará debate, quem sabe ajudará na compreensão da realidade (da forma como a vejo). Vencidas essas premissas, que no fundo revelam algo mais íntimo sobre nossas tolas vaidades, de sermos vistos (lidos), levados em conta na “fila do pão”. A questão é outra e mais complexa, quando abro um texto qualquer, qual seja? É se vale a pena efetivamente escrever qualquer coisa numa época como essa em que vivemos, todos nós atolados de coisas para fazer em busca de sobreviver, quase uma escravidão moderna, muito trabalho, pouca renda, quase nenhum descanso, ou desemprego cruel.
Claro que isso não me paralisa, não me fez adormecer e ou me tornar indiferente, mas, ao mesmo tempo, é preciso ter resignação e preparação para outra realidade, incerta, porém, possível e absolutamente necessária. É disto que tenho alimentado meu cérebro, sobreviver, sobreviver e lutar muito.
O resto é silêncio (Hamlet)
