“Que é a vida? Um frenesi.
Que é a vida? Uma ilusão,
uma sombra, uma ficção;
o maior bem é tristonho,
porque toda A vida é sonho,
e os sonhos, sonhos são”.
(A Vida É Sonho, Pedro Calderón de La Barca)
O dia depois de amanhã será diferente de todos os outros que já se viveu.
A vida ganhará uma conotação completamente distinta de então, todos os valores da modernidade/atraso entraram em xeque, que nenhum cheque pagará. Todas as contas estarão vencidas e surgirão novas e outras, mas a maior conta será a que cada um terá consigo e com os demais que sobrevirão.
A velocidade e a pressa que nos impuseram, correndo contra o sol, dia a dia, num desespero, sem respeita a lei fundamental do dia, que são as 24 horas, nenhum segundo a mais. E não era apenas por sobrevivência, tem muito mais de comportamento acelerado para que não se tenha tempo para pensar, então o Tempo, as horas, viram os culpados por não se realizar, mas era realizar o quê?
Toda essa vida de milhares de revoluções por minutos é que leva ao desespero quando o chão se abriu e se pede para “desacelerar”, como? Por quê?
Percebe-se aos olhos nus, um processo complexo de desagregação geral, instituições, poderes, lideranças, organizações, quase tudo, enfim.
O cenário parece apocalíptico, é preciso entender essa profunda mudança que a humanidade experimentará, as certezas e verdades definitivas serão questionadas, apenas pequenos espaços de afirmações e perspectivas, quase um facho de luz na escuridão pode e deverá se abrir, tem-se que ficar atento para captar o porvir.
A práxis humana se alterará completamente, quando há um questionamento geral ao que estava estabelecido, a priori. Pode-se ficar cético, cínico, indiferente, mas não imune, ao que se passa nessa vaga histórica, esse hiato dos últimos quinze anos, com a maior crise do Kapital, desde 1929, a de 2008, agora a queda da fórmula ultraliberal, derrotada por um vírus, absolutamente invisível.
As atitudes nem sempre parecerão coerentes, mas há uma enorme chance de se criar algo inovador, para vida, individual e/ou coletiva.
As grandes verdades ruíram, o que virá, um novo conceito de vida e esperança, elas renascerão das experiências comuns, de pequenos e decisivos coletivos, por temas, por interesses, demandas, mas profundamente identificados com a ruptura anticapitalista.
A vida vai vencer.
É filosofia, não profissão de fé que nos libertará. A utopia ressurgirá, ou a humanidade (humanismo), sumirá desse planeta.
Em 2009, havia pouco tinha chegado à Espanha, fui ver no Teatro Liceu, “A vida é sonho”, drama lírico do Teatro Barroco espanhol escrito por Calderón de la Barca, um dos três grandes dramaturgos, ao lado de Lope
de Vega e García Lorca. Chamou-me a atenção a montagem quase “moderna” da peça, com o ator Chete Lera. O drama conta a história do príncipe Segismundo, que, após uma profecia de que tomaria o trono do pai, foi por esse encarcerado ainda pequeno, de sorte que a vida que ele vivia e conhecia era somente naquela “caverna” (de Platão), até que, convencido por “revolucionários” que o libertam, investe contra o trono do monarca e toma o poder, não sem notar essa dicotomia entre o sonho e a realidade da vida, depois que conhece a vida lá fora. Embora tenha tomado o poder, Segismundo o devolve, pois não o quer. Aprendeu que a única felicidade possível pra ele é exercer sua própria liberdade. Já disseram que Segismundo é um Hamlet revolucionário e idealista, pois, ao contrário do personagem shakespeareano, não se comporta como uma peça na emgrenagem do poder, tanto que o contesta e o despreza. Mas e nós, que estamos na “caverna” do isolamento social, o que virá quando findar a quarentena? Vejo dois caminhos possíveis, ainda que possa haver bem mais: emergirá das sombras regime ainda mais autoritário, ou não aceitaremos mais essas relações do velho capitalismo, que nunca podemos subestimar.