Arnobio Rocha Política Uma Breve História do Processo Constituinte de 1987

821: Uma Breve História do Processo Constituinte de 1987

 

 

O texto abaixo é parte da minha dissertação de conclusão do Curso de Direito, em 2007, como voltou o debate sobre poder e constituição, resolvi publicar este capítulo que conta o processo e as lutas em torno do congresso constituinte, lembrando que parte da esquerda se negou até assinar a Constituição Federal em 1988, por representar os interesses do grande capital que se formalizou no famoso “Centrão”.

Processo Constituinte Brasileiro de 1987

 

A queda da Ditadura Militar e o movimento pela nova Constituição

As grandes lutas operárias abalarão as estruturas do poder dos militares, desafiados pelas greves metalúrgicas de 1978. A ditadura é colocada em xeque, novas lideranças vão surgir, os movimentos pela Anistia e sua concessão em 1979 são sinais evidentes da fraqueza do regime, que se sustentara numa realidade de grande crescimento econômico, que virá associado também à inflação e a imensa dívida externa que se avolumará.

Neste contexto a ampla derrota do partido do governo nas eleições de 1982 e a reforma partidária, numa clara tentativa da ditadura de dividir a oposição democrática ao regime, já não terá valia e o último ato da ditadura é impedir as eleições diretas.  Estas são realizadas na forma indireta, em mais uma transição transada. No Congresso Nacional,  Tancredo Neves é eleito com o apoios de importantes políticos que meses antes davam sustentação ao governo militar.   Liderados por José Sarney (que foi Presidente da Câmara pelo partido da Ditadura) e Antônio Carlos Magalhães, foi fundada a “Frente Liberal”.  Sarney torna-se Vice na chapa de Tancredo Neves, na eleição indireta.

Para mais uma vez comprovar a tese da burguesia: “Mudar, para continuar na mesma”, no dizer de Lucchino Visconti. Os antigos líderes civis da Ditadura embarcam no barco da oposição, mas já com leme de comando. Com a morte de Tancredo Neves a presidência cairá no colo de José Sarney. Como a promessa principal era fazer uma nova Constituição, em 1985, começa o jogo de empurra para definir como se dará a elaboração da mesma.

O ano de 1985 é particularmente confuso; a herança da ditadura cobrará rapidamente a fatura, inflação alta, descontentamento com a mudança superficial. A morte de Tancredo acaba por dificultar a transição da Ditadura para Democracia, os genuínos partidos de esquerda, em particular o ainda pequeno PT, Partido dos Trabalhadores, conseguem significativos resultados nas eleições municipais de prefeitos das capitais.

A resposta vem com a emenda Constitucional n. 26, de 17 de novembro de 1985, que convoca a Assembleia Constituinte a se reunir em fevereiro de 1987, com os deputados e senadores eleitos em novembro de 1986, somados aos senadores de 1982. Obviamente esta emenda é uma decepção, pois havia um  movimento, no seio da sociedade civil organizada, que exigia uma Constituinte exclusiva e não um congresso com dupla função.

No início de 1986, a elite dirigente, vendo os resultados colhidos nas eleições municipais de 1985, engendra o famoso Plano Cruzado. Os fiscais do Sarney são criados no Brasil para derrotar a inflação, mas no fundo o plano foi a base programática dos candidatos governistas e para uma ampla vitória da coligação que dá sustentação ao governo da chamada Nova República. Vencidas as eleições o famigerado plano econômico se desmonta, os preços voltam a disparar, perde-se o controle inflacionário, mas a maioria conservadora já está garantida.

A Constituição Federal de 1988

As justificativas para elaboração desta nova Constituição acima discutidas demonstram que a burguesia brasileira passa o controle do Estado aos civis depois do longo período de quebra da ordem legal. Precisa-se entender o  momento histórico, econômico e social que se vivia naqueles anos, em particular entre 1986 e 1988, para melhor situar o momento da gestação Constitucional  e as grandes transformações que se passavam no mundo.

A Constituinte – O panorama Mundial

Já em 1986 o mundo surpreendeu-se com a subida de Gorbachev ao governo da União Soviética e logo ele faz o anúncio de duas políticas: a Perestroika e a Glasnot. A primeira referia-se à abertura dos processos econômicos para superar o atraso do desenvolvimento tecnológico. O país, que foi submetido a uma corrida irracional armamentista, canalizou todo seu potencial econômico para este fim, tendo como consequência um desenvolvimento de sua infraestrutura extremamente deficiente em qualquer outra área, como indústria automobilística, eletrodomésticos, revelando ao mundo o quão desigual e artificial era a concorrência imposta na corrida armamentista. Já a outra política, a Glasnot, era o sopro de liberdade de divulgação do que acontecia na União Soviética, da necessidade de abrir a realidade soviética ao mundo e também o mundo aos soviéticos.

Do lado americano, com a chegada de Ronald Reagan em 1982 ao governo, o combate ao “comunismo”, denominado pela doutrina de “império do mal”, foi sem trégua. A propaganda americana do “American way of life” ganhou como nunca o mundo, favorecida por uma conjuntura econômica excepcional, superada crise do petróleo dos anos 70. Ainda contando com a fraqueza do outro lado do muro, os anos 80 serão marcados pelos ideários americanos do liberalismo.

Do ponto de vista econômico, as teses do novo liberalismo, pregadas pela primeira-ministra britânica Margareth Tatcher e por Reagan, irão se impor no mundo. O ataque é imenso às principais conquistas dos trabalhadores: a flexibilização dos contratos de trabalho, as reformas na previdência social e o corte dos subsídios aos programas de assistência às comunidades mais carentes estão entre estas medidas, que visam diminuir a presença e a intervenção do Estado na economia. Aquela realidade bipolar que favorecera os trabalhadores do mundo ocidental já não era tão necessária, pois com a iminente queda do muro de Berlim, as potências ocidentais cuidaram rapidamente de maximizar seus ganhos financeiros, retirando uma parte significativa das conquistas sociais.

Os países do chamado “terceiro” mundo, experimentaram nas décadas de 60/70 forte crescimento patrocinado pelos Estados Unidos, estes investimentos forma feitos como forma de se manterem fiéis ao ideário do capital e combater a influência das revoluções socialistas. Porém, estes países recebem a “fatura” no início dos anos 80 e têm que pagar imediatamente suas dívidas e serviços prestados pelo FMI e pelo Clube de Paris. Em 1982 o México declara moratória, iniciando uma crise sem precedentes na concessão de novos créditos a este conjunto de países. O Brasil também fará sua moratória em 1987, mas foi mais uma jogada política do que propriamente uma interrupção do pagamento de sua dívida externa.

O arcabouço jurídico do mundo também começa a mudar. Tudo aquilo que fôra conseguido pelo Estado de Bem Estar Social (Welfare State) paulatinamente começa a ruir. Os ataques de Reagan e Tatcher não deixam dúvida sobre a realidade que o mundo ocidental enfrentará na próxima década que se avizinha. É neste contexto que se entra no ambiente da formulação da Constituição Brasileira.

A Constituinte – a polêmica acerca do Poder Constituinte

Conforme visto no capítulo anterior, a transição da Ditadura para a Democracia pressupunha, como foi prometida durante a campanha de Tancredo Neves, uma nova ordem Constitucional. A morte prematura de Tancredo e as divisões no seio da classe dominante tornam o movimento pelo Congresso Constituinte um risco à ordem burguesa.

O crescimento da oposição de esquerda, com conotações mais radicais, lideradas pelo PT e pela CUT (Central Única dos Trabalhadores) em ampla aliança com a Igreja Progressista organizada nas CEBs (Comunidades Eclesiais de Base ), setores das classes médias urbanas e entidades de classe como OAB, faz com que a burguesia prepare o contra-ataque, que foi consubstanciado no Plano Cruzado.

Mas a grande polêmica dar-se-á já antes do processo Constituinte sobre o caráter deste Congresso, se seria exclusivo para elaborar a Constituição com ampla participação popular ou mais uma daquelas soluções que dão um aparente caráter democrático, apenas uma solução de continuidade sem que se mexam  nas bases das relações de poder.

Este debate é empalmado por Raymundo Faoro que aponta as lições do Abade Sieyès sobre o Poder Constituinte, de que é o “Povo” que elabora as leis, com o controle direto sobre um congresso exclusivo constitucional. Esta premissa nunca se cumpriu no Brasil, em todos os processos constituintes anteriores, conforme foi descrito acima. Mais uma vez ele reivindica que se imponha a verdadeira Constituição com poder Constituinte nos moldes clássicos. [1]

Do outro lado da polêmica, mesmo entendendo corretas as lições de Sieyès, Manoel Gonçalves ensina que o advento da Nova República não significa uma ruptura com a ordem vigente. Além disso, sem a Revolução não há que se falar em Poder Constituinte, pois a mesma elite dirigente da Ditadura estava no poder político que se seguiu. Não cabe discutir no momento se o poder era exercido por um civil; para ele não havia o fato fundante de uma nova constituição, pois  segundo as  lições de Kelsen que é ruptura da ordem vigente, que é a condição para uma nova Constituição Originária. [2] Defende ainda que o mais conveniente do ponto de vista jurídico seria uma reforma na Constituição Vigente. A solução adotada através da licença dada pela emenda n. 26/1985 é que fundará juridicamente a Constituinte de 1987/88 e conseqüentemente a Constituição de 1988, mas alerta que a lição clássica de Sieyès não foi cumprida.

O governo Sarney, de posse da maioria formada pela Aliança Democrática (PMDB e PFL), faz cumprir mais uma vez a sorte da nova Constituição que será elaborada pelo Congresso Constituinte, reunido em fevereiro de 1987. Já na sua prévia instalação, os blocos que se formaram durante o processo constituinte se forjam.

A Constituinte – O Centrão e as emendas populares

Com a vitória avassaladora do PMDB nas eleições em quase todos os estados, seguido do PFL, partido que obteve a segunda maior bancada de deputados e senadores, a configuração geral da Assembleia Nacional revelou a predominância do pensamento conservador. O restante das cadeiras ocupadas, cerca de 25%, ficou distribuído entre os demais partidos, dentre dos quais o PDS, PT, PDT, PTB e outros menores como o PL, PDC, PC do B, PCB e o PMB.

Apesar da maioria conservadora, a Constituição foi marcada por uma profunda polarização social; toda a energia acumulada nas jornadas contra a ditadura será sentida com a organizada e disciplinada bancada de esquerda (PT, PDT, PSB, PC do B), que faz um intenso trabalho de aproximação com os democratas de perfil de centro-esquerda. Inicialmente ela se aglomerava quase que na totalidade no PMDB e depois se divide já no segundo turno de votação das emendas, com a fundação do PSDB, que acaba recebendo boa parte do antigo PMDB histórico.

O outro lado será reunido em torno do que se tornou conhecido como Centrão, composto fundamentalmente pelo PDS, PFL, PP. Estes partidos durante a ditadura formavam a ARENA, partido que deu sustentação ao regime militar e informalmente se rearticula. Este grupo sob a batuta de Roberto Cardoso Alves (famoso pela frase “fransciscana” do “É dando que se recebe”) fará o contraponto da Direita o que bem representa como foi elaborada esta constituição. Ademais este grupo será reforçado pela intervenção direta da máquina governamental para que nada saia do controle da ordem burguesa.

A comissão responsável pela elaboração do anteprojeto, a Comissão Arinos, era eclética em termos ideológicos, de modo que o texto resultante recebeu críticas dos setores mais progressistas da sociedade, afinados com o compromisso de uma Constituição renovadora, bem como de setores conservadores. De qualquer modo, o entrechoque das correntes representadas na Comissão resultou num texto de caráter mais progressista. [3]

Os trabalhos da Assembleia Nacional Constituinte foram instalados em primeiro de fevereiro de 1987, sob a presidência de Ulysses Guimarães e tendo o deputado Bernardo Cabral como o relator geral. Para dar início à elaboração da nova Constituição, procuram-se colher, além das contribuições dos constituintes, as sugestões de diversos setores da sociedade civil, que apresentariam aos responsáveis pela preparação do texto algumas propostas para serem incluídas no projeto final de Constituição. A organização dos trabalhos obedeceu a determinados procedimentos para viabilizar todo o processo, como a criação de comissões gerais (num total de oito), subcomissões (24 ao todo), uma comissão de sistematização, outra de redação e o plenário da Constituinte, onde seria votado todo o projeto da Lei Magna.  [4]

A escolha de Mário Covas ligado às correntes progressistas, como líder do PMDB no Congresso, tornou possível o que antes parecia muito pouco provável: a escolha de políticos identificados com as ideias progressistas que possibilitassem alguns avanços no texto da nova Carta. A participação desses políticos nas subcomissões de grande importância inevitavelmente levaria à Comissão de Sistematização. A polêmica travada em torno das mudanças que deveriam ocorrer no regimento interno polarizou as atenções no processo de votação das emendas, tanto pelo grupo conservador, com maior peso numérico representado pelo Centrão, quanto pelo setor progressista, articulado com o grupo dos moderados. Os primeiros defendiam a preferência automática de emendas, enquanto que os últimos reivindicavam a presença dos deputados para a votação. Pelo menos uma alteração no regimento tornou viável, pela primeira vez, a participação popular no encaminhamento de propostas de emendas aos deputados das subcomissões na primeira fase da Constituinte. Esse subsídio proporcionou à bancada progressista um apoio mais significativo, levando em consideração a representatividade minoritária da esquerda no plenário da Câmara. [5]

Toda essa aparente vantagem dos deputados comprometidos com as emendas populares, na fase inicial da Constituinte, acabou sofrendo um contra-ataque dos setores mais conservadores do Congresso, representados pelo “Centrão”, que inviabilizou grande parte das tentativas de estabelecer uma constituição diferente dos moldes das anteriores. A fase final da Constituinte vai caracterizar a interferência dos grupos conservadores dominantes tanto do Congresso quanto da sociedade como um todo. Mesmo com muitas perdas para a classe trabalhadora, o texto final, sobretudo no capítulo relativo aos Direitos Sociais, incorporou alguns avanços, contrariando as perspectivas das elites tradicionais. Inovou em determinados princípios, em particular no que diz respeito aos direitos individuais, como, por exemplo, o direito à informação (habeas data) e à exclusão da pena de morte no texto constitucional.

No entanto, na Ordem Econômica, optou-se preferencialmente por uma roupagem liberal conservadora com o fortalecimento da empresa privada. A União Brasileira de Empresários (UBES), a União Democrática Ruralista (UDR) e a Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (FIESP) atuaram em conjunto na tentativa de colocar um freio às conquistas trabalhistas e à discussão sobre a questão agrária, incluindo a polêmica sobre a obrigação social da terra, a emissão de posse e a demarcação máxima para os imóveis rurais.

A síntese possível de movimentos tão díspares é uma acomodação geral de interesses, cada lado sentirá que venceu a batalha, mas o trabalho é de fundo extremamente contraditório para cada avanço conquistado. Percebe-se uma contraposição conservadora; vista hoje parece melhor do que o esperado, fruto principalmente das mudanças da sociedade brasileira e mais ainda no mundo.

A Constituição que surge já nasce com uma defasagem em relação ao que virá de realidade jurídica no mundo. Com o fim da União Soviética, a queda do Muro de Berlim pouco mais de um ano após a edição da Constituição e o predomínio da supremacia americana, além de todo o conjunto de concessões feitas aos trabalhadores e cidadãos faz parecer que o Brasil está fora do debate global.  Pode-se afirmar que esta será a última Constituição, de um país importante em que as teses do Novo Liberalismo não são definitivamente triunfantes. Claramente várias teses liberais foram impostas, mas no conjunto a Constituição não pendeu para o lado liberal, individualista, privatista.

Estes ventos neoliberais começaram a surgir com a edição das emendas constitucionais. De forma disfarçada a elite começa a enxertar na Constituição o ideário vigente no mundo, em particular a adoção de políticas de privatização, reformas da previdência, redução do Estado, abandono da saúde, educação e ataque às conquistas, mesmo pequenas, dos trabalhadores no Brasil. Entende-se que é este o “novo” caminho, falando-se inclusive na necessidade de uma Nova Constituinte, no início do Séc. XXI. Em resumo, em poucas palavras: o Estado Mínimo – que só alavanca os ganhos e dividendos da classe dominante.

A Constituição Cidadã e suas Contradições principiológicas

O norte maior da Constituição foi a Dignidade da Pessoa Humana assumida como valor fundamental constitucional. Principista ou não,  acabou sendo batizada com o conhecido epíteto “Constituição Cidadã”; assim o foi principalmente pela conjuntura nacional que se diferenciou do mundo, pois o movimento organizado (Sindical, Social, da Sociedade Civil) teve seus maiores dias justamente durante este período e arrisca-se dizer que foi seu “canto do cisne”.

As imensas caravanas de pressão sob o Congresso Constituinte surtiram efeito na elaboração e nas conquistas sociais que foram consagradas no texto constitucional. Não pôde a burguesia ser insensível às demandas populares; um setor da burguesia liberal, que sofrera também durante a ditadura, se acautelou contra possíveis golpes futuros e sobremaneira corroborou com estas demandas. Grandes regras de processos de caráter democrático subiram o patamar dos códigos e foram reconhecidos como Direito Constitucional, saindo em muitas vezes da esfera privada e da relação entre particulares para serem tutelados pelo Estado. Relativizaram assim as relações de cunho privado, submetendo-as aos interesses públicos.

Alguns exemplos destas muitas contradições que carregaram a Constituição de 1988 são lapidares: ao mesmo tempo em que se consagra a propriedade privada, ela diz por outro lado o limite que esta tem em razão da função social que deve cumprir. Mas há exemplos de claros avanços consubstanciados no Título “Dos Direitos e Garantias Fundamentais” elevado a cláusulas pétreas, que só seriam mudadas com uma outra Constituição. De exemplo contrário foi imposta uma série de limites ao Estado na intervenção econômica, que será feita atendendo plenamente aos interesses privados.

Pela fragilidade institucional verificada na História, com seguidas rupturas legais, não se pode secundarizar os avanços de um conjunto de princípios que são consagrados na Constituição. Pois se sabe o quão é complicado se ter maioria segura para alterá-la, se fosse texto Infraconstitucional seria mais simples a mudança, sendo feita ao bel-prazer do Executivo em plantão, assim louva-se que muitas conquistas tenham efetivamente acento no seio da Constituição.

A maior conquista foi o texto constitucional ter colocado no seu centro a Dignidade da Pessoa Humana, aqui mesmo com a conotação política. Os efeitos jurídicos serão enormes para o bom intérprete e este norte será uma poderosa ferramenta nos novos julgados, na nova forma de peticionar, em como se farão os contratos, não mais sob a ótica da simples autonomia da vontade, mas de sua relativização, com a profunda preocupação de manter o equilíbrio e o respeito entre os contratantes.

A dicotomia Pública e Privada é enormemente relativizada; muitos institutos privados passaram a ser vistos como normas cogentes, de interesse público, o caminho para um Direito Civil Constitucionalizado. Uma Constituição Civilista foi aberta; mesmo com as imensas contradições que ficaram expostas no texto de 1988, houve um grande mérito em sua elaboração e na sua aplicação.

Já há no texto constitucional, como ordem expressa, a elaboração de diversos institutos que visam incluir no ordenamento as mudanças das relações sociais e econômicas, tais como o Código de Defesa do Consumidor, o reconhecimento dos direitos difusos e coletivos, não só os individuais, mas também os transindividuais.  Expressa também a preocupação com o meio ambiente equilibrado, como ação do poder público. Aponta a necessidade de erradicação da miséria, dos desequilíbrios regionais para enfim construir um país mais justo e que distribua a riqueza.

Claro está que muitas destas questões são apenas de princípios, que demandam a ação efetiva do poder público, mas melhor estarem expressas na constituição do que fora dela, podendo ser utilizadas como forma de pressão sobre as autoridades. Estas demandas, sendo bem trabalhadas pelos operadores do Direito em particular e pela sociedade em geral, apontam que há remédios e meios de lutar para que cada item da Constituição seja executado, não se tornando apenas letra morta.

O mérito de consagrar grandes elementos Públicos e Privados no seio da Constituição cumpre a assertiva de Paulo Bonavides, que diz: “Ontem os Códigos, hoje a Constituição”.  Torna-a o centro do Direito. O que na Europa foi movimento do início do Séc. XX, mais particularmente nos pós-guerra, o Brasil entra nesta mesma ordem com a promulgação da Constituição de 1988.

A Constituição Cidadã e o Século XXI

Servem de alerta, aos trabalhadores,  os ataques feitos aos direitos sociais e trabalhistas na Europa e Estados Unidos, com a nova Doutrina Neoliberal também conhecida como “Consenso de Washington”. No Brasil, bem ou mal, a Constituição serve de anteparo, os avanços desta política muitas vezes esbarram nas premissas consagradas na Constituição e não é a toa que há sempre cantilena da necessidade de uma nova constituinte, em particular feita pela imprensa conservadora.

Há uma clara necessidade de ruptura com o texto constitucional para efetivar as mudanças liberais. Desde 1988 até o presente momento a Constituição recebeu 56 emendas, uma média de três ao ano. Este movimento intensificou-se particularmente no período do Governo Fernando Henrique Cardoso, entre 1995 e 2002, e editou 37 emendas, quase cinco ao ano. Muitas delas efetivamente distorcem o sentido da Constituição Cidadã, algumas extremamente casuísticas como a da sua própria reeleição, instituto não previsto e que foi criado apenas para atendê-lo. Contraditoriamente, com a derrota do partido mais afinado com o Neoliberalismo e a vitória da esquerda, o debate virou para acabar com a reeleição, demonstrando claramente o porquê de sua adoção em 1997.

Criaram-se ainda uma série de agências “reguladoras”, que nada têm a ver com a lógica da administração pública; são verdadeiros “seres” estranhos ao ordenamento legal, introduzidos via Emenda Constitucional, que nunca foram definidas se são autarquias e suas reais funções. Chegou-se ao absurdo de ministérios inteiros serem esvaziados em favor destas agências. Mais ainda, estas têm reiteradamente inovado, emitindo normas e procedimentos com força de lei, sem que haja lei que delegue esta capacidade.

Mesmo com a derrota do projeto neoliberal e subida ao poder do líder operário Luís Inácio Lula, as mudanças dentro do funcionamento do Estado estão tão arraigadas que pouco se tem feito para demover o Estado às suas funções mais essenciais. As características que a administração Petista têm  tentado dar ao Estado pouco diferem do governo Fernando Henrique. O limite é o Sistema Capitalista que em muito prescinde de governos, políticas e leis. A integração da economia mundial, dominada pela velocidade que os capitais se deslocam, sem respeitar fronteiras, governos e ordem legal, torna mais complexo o desafio de se ter uma nação soberana.

Mesmo em nações com maior poder econômico, este movimento de capitais sem regulação tem provocado enorme prejuízo na vida social, devastando poupança e vida humana.  É este o contexto; o Direito é convidado a encontrar respostas e soluções para os enormes problemas que afligem o mundo em geral, e o Brasil em particular.

Aspectos Civis da Constituição Cidadã

O grande feito da Constituição de 1988 sem dúvida foi ter seu centro a Dignidade da Pessoa Humana. Mas ela foi mais além quando traz para si aspectos civis, numa espécie de atualização, ou antecipação do futuro Código. Nomeadamente quando regula a questão da propriedade, da família, a prisão civil do depositário infiel etc.

A) Propriedade

O texto constitucional garante, de um lado, o interesse pessoal, consagrando o direito à propriedade. Mas não se trata de um direito absoluto. Determina que esta mesma propriedade cumpra uma função social, voltando-se agora ao interesse da coletividade.

Propriedade privada e função social da propriedade são, na Carta Magna, direitos e garantias individuais, além de princípios gerais da ordem econômica (art. 170, CF).

B) Família

Estatui-se a igualdade entre Homens e Mulheres em direitos e obrigações, assim como os direitos e deveres referentes às sociedades conjugais, quebrando o pátrio poder.

Reconhece na Família a base da sociedade e que deve ter especial proteção do Estado. O Casamento deve ser feito de forma gratuita. Estabelece a união estável como forma de sociedade conjugal e que seja facilitada inclusive a sua transformação em casamento.

 C) Questão da Prisão Civil

O texto constitucional determina que ninguém seja preso por dívida, exceto nos casos de inadimplemento das obrigações alimentícias de forma inescusável.  E ainda do depositário infiel, Não deixando margem a qualquer outra forma de coação prisional no que se refere às obrigações civis.

D) Questão dos Contratos

A ordem econômica tem nos contratos a sua espinha dorsal. A produção e a distribuição de bens e serviços envolvem um complexo inimaginável de contratações que visam atender às mais diferentes necessidades humanas.

Os excessos do liberalismo econômico, entretanto, se fizeram sentir sobremaneira no campo social. Os textos constitucionais refletiram a lição, albergando princípios de moderação, verdadeiros freios impostos aos abusos da vontade no momento da contratação. O Estado se apresentou como relativizador da clássica fórmula pacta sunt servanda. Também o contrato deve cumprir a sua função social, sem esquecer-se da desigualdade das partes. O art. 170 da CF reza que a ordem econômica visa, primordialmente, assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social. Deve estar embasada em princípios como a livre concorrência, a defesa do consumidor e do meio ambiente, a redução das desigualdades regionais e sociais, a busca do emprego pleno, o tratamento diferenciado a empresas de pequeno porte etc. Conclui-se que políticas neoliberais, fundadas na ideia de um Estado mínimo, são hoje incompatíveis com a ordem constitucional.


[1] Constituição e constituinte. São Pauo: Editora Revista dos Tribunais, 1987 – Artigo de Raymundo Faoro “Constituinte ou Congresso com poderes Constituintes”. p. 12-16
[2] Ferreira Filho, Manoel Gonçalves, 1934 –  O poder constituinte/Manoel Gonçalves Ferreira Filho- 5 ed.rev.- São Paulo: Saraiva, 2007. p 158
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4 thoughts on “821: Uma Breve História do Processo Constituinte de 1987”

  1. Boa noite, gostei do texto. Gostaria de ser informada acerca da autoria e a referencia para citação deste texto. Obrigada, ( tenho um pouco de urgência :) ) Abraços,

  2. tem que valorisar os trabalodores antigos e garantir os seus dereitos na funsao que esece muitos estao em devios de funsao e nao seu aprovetadso nas funsao que estao esesendos si estao a mais de sinco anos tem que ser efetivaods na funsao que esta esesendo atuamente

  3. Muito bom o texto. Muito esclarecedor. Sobretudo a explicação sobre o pano de fundo que culminou na Constituição de 1988.

    Poderia ver o seu TCC?

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