“E ninguém nem percebia
Que o real e a fantasia se separam no final”
(canção em Dois Tempos – Vital Farias)
Há uma grande decepção com vários artistas brasileiros por falta de posicionamento às causas populares, alguns inclusive que cruzaram a linha, se posicionando francamente favoráveis à figuras repugnantes como Bolsonaro, outros com posturas contra ciência, no caso da pandemia, revelando uma profunda ignorância ou que foram vítimas das fake news.
É sempre muito difícil separar a grandeza de um artista de suas posições políticas, então, quase sempre, passa-se a ter uma visão negativa, não das questões políticas, mas sobre a própria obra deles, o que parece injusto, mesmo que compreensível tal atitude, especialmente em conjunturas extremamente acirradas, ou de ruptura histórica com valores universais de civilidade e de humanismo.
De certa forma a função do artista é transgredir, trazer algo transformador para a vida do cidadão comum, como se ele fosse uma espécie de porta-voz de sentimentos que rompem a realidade tão dura das pessoas. Suas poesias, canções, voz, interpretação são janelas para novos sonhos, imaginar um mundo diferente, sair do lugar em que se (sobre) vive.
E não é fácil lidar quando os artistas se tornam mero reprodutores do sistema, sem nenhuma visão crítica e que possa expressar uma inconformidade com a situação social ou política do país.
A repulsa ou os “cancelamentos” acabam por reduzir o debate, ao gosto ou não gosto, o que, em última análise, perde-se o debate o político e também a chance de entender as contradições humanas de que não escapam, nós e os próprios artistas.
Outro viés desse tempo cruel é julgar obras monumentais com nossos olhos dos dias presentes, dos valores em voga nessa quadrada histórica. Por exemplo, ontem defendi o grande Machado de Assis, que estava sendo “cancelado” por ser leitura difícil, portanto, chato.
Depois de publicar o texto, deparei-me com comentários de Machado de Assis, um “mulato”, não assumia a sua negritude, e não teve postura de enfrentar as mazelas pós escravidão, assim, Machado, não teria nenhum valor literário especial. É sério, fiquei em choque. mas nem tanto. Anos atrás, pessoas bem pensantes com viés de esquerda, queria alterar as obras de Monteiro Lobato por serem racistas.
Do meu ponto de vista, ambas as questões apresentadas acima, vão pelo mesmo caminho, qual seja; a dificuldade de entender a função do artista, sua liberdade política e ideológica, a compreensão da época histórica e as circunstâncias em que as obras foram escritas, tendo visão crítica, mas não virar censores nem de artistas, muito menos das grandes obras fundamentais da humanidade, inclusive, das contradições internas que elas eventualmente carreguem.
Como “proibir” Shakespeare, Dante, Machado de Assis, Monteiro Lobato? Deixar de curtir as músicas de Vital Farias, Elomar? Criar catálogos ou índex sobre obras, personalidades, estaremos agindo como censores, queimadores de obras, como os nazistas fizeram, a produção humana é cheia de beleza e dor, as contradições, é o que as tornam tão fundamentais.
Penso que não precisamos criar textos de apoio para explicar as obras, ou aos artistas, apenas ouvir, ler, sem medo de “macular” o que pensamos. Como não podemos “dirigir” a sensibilidade dos outros, achando que somos melhores, pois assimilamos de forma diferente o valor de cada um artista ou de uma obra escrita, pintada, esculpida.
Viva a Humanidade e seus gênios criativos.