“Não adianta nem me abandonar
Porque mistério sempre há de pintar por aí
Pessoas até muito mais vão lhe amar”
(Esotérico – Gilberto Gil)
Falar de Gilberto Gil para mim tem que primeiro contextualizar, e fazer arremessos ao passado, noções de presente e passagens de minha vida, especialmente minha relação com a Bahia, com Salvador e sua gente.
Morei no Japão entre junho e novembro de 1996, ao voltar tive que ir a Salvador para uma reunião na Telebahia, nosso guia era um engenheiro chamado Guedes, ele de camisa florida, bem à vontade e nós formais de paletó e gravata, em plena sexta-feira.
Paramos para o almoço, umas 13 horas num restaurante no dique do Tororó, aí Guedes me deu a maior lição de baianidade, ao explicar o que era o Pelourinho: “É como um presépio, tudo ali brilha e tem um significado, é uma poesia de Gil ou de Caetano, você demora, mas vai entender o que eles dizem”
Aquilo grudou na cabeça, em fevereiro do ano seguinte fui morar por 6 meses em Salvador. Conheci mais a sua gente, fora do estereótipo e compreendi melhor os mitos, os ritmos, as manhas e a saga de um povo tão especial, que tem em Gilberto Gil um de seus marcos fundamentais, de reafirmação cultural, de expressão humana e vida.
Gil remonta aos meus sete anos, 1976, naquela primeira tv preto e branco de casa, que tinha subi no telhado para arrumar a antena e tentava captar imagem melhor e assistir o Sítio do Pica Pau Amarelo, com a abertura na voz de Gil, essa é minha lembrança, a voz, os versos, que nunca saíram da mente.
Um pequeno corte no tempo, já morando em Fortaleza, ouvia Realce, aquele incrível LP de tantas músicas espetaculares, faixa a faixa naquele 3 em 1 gradiente, ouvíamos em casa, ainda não entendia tanto, mas era uma melodia um balanço, que empolgava. Depois veio Luar, com Palco e tudo mais que precisava descobrir.
Logo depois Um Banda Um, com duas das mais extraordinária músicas brasileiras, aquelas que me seguem para o todo sempre: Drão e Esotérico. Nos momentos que me distanciava de Gil, quase sempre sobre política, posicionamentos, ouvia Drão e Esotérico, e o amor retornava por inteiro, o charme, o jeito de cantar e rir.
O tempo passa e Gil se renova, na sua fragilidade física, que a vida impõe, os limites do corpo, da consciência, chega para ele, para nós. Gil agora me lembra, a figura, a representação, Mandela, uma associação que me veio à cabeça quando ele cantou na ONU com Kofi Annan, naquele dia histórico.
Gil, Chico Buarque, Milton Nascimento são plenos de poesias, as canções deles que já me inspiraram no amor, nas lutas, também me embalaram na minha dor maior, na despedida e saudade na minha tragédia de vida com a partida de Letícia. Por alguma razão, eles me salvaram, em todos os textos que os citei e os fiz ouvir.
Obrigado, Senhor Gilberto Gil, axé!!!
A primeira música que escutei na voz do Gil está sendo tocada e cantada aqui em frente ao prédio onde moro, pois um morador resolveu fazer um concerto da área de lazer do edifício em frente: “Eu só quero um xodó”, de Dominguinhos e Anastácia, enquanto leio de novo seu bonito texto, Arnobio. Que coincidência! Ouvi-a, pela primeira vez, em 1974, na rádio da casa vizinha que, sintonizada toda tarde, nos brindava com essa canção linda na voz do Gil. “Que falta eu sinto de um bem…” Gil me presenteava uma epifania (no sentido, aqui, de manifestação do sublime). Essa canção fala, em especial, sobre saudade, embora essa palavra não seja pronunciada uma única vez na letra. Isso se deve à genialidade dessa grande (e desprezada, por ser mulher e nordestina) poeta brasileira chamada Anastácia, que também compôs a letra da sublime canção “Contrato de Separação”: “Olha!, essa saudade que maltrata o meu peio…Eu quis fazer com ela [com a saudade] um contrato de separação…” Magnífica! De Dominguinhos e Anastácia, Gil também gravou as belíssimas “Lamento Sertanejo” e “Tenho sede”. A força do povo nordestino está presente mais em Gil que em Caetano. Gil faz isso: canta suas lindas canções e nos oferece também as pérolas do nosso cancioneiro, criadas por outros e outras poetas da canção, Gil é generoso. Mas, se é pra falar sobre as composições de Gil, “Tempo Rei”, “Se eu quiser falar com Deus”, “Drão”, como você citou acima, “Toda menina baiana”, “Pai e Mãe”, “Refazenda”, “Expresso 2222”, “Super-Homem, a canção”, “Estrela”, “No dia em que vim-me embora”, em parceria com Caetano, e “Domingo no Parque”, sua expressão máxima, são, pra mim, as mais belas e representativas canções do Mestre baiano. Vida longa a Gil, um de nossos maiores Orixás.