“Do povo oprimido nas filas, nas vilas, favelas
Da força da grana que ergue e destrói coisas belas
Da feia fumaça que sobe, apagando as estrelas”
(Sampa – Caetano Veloso/Elvira Perpinya Brull)
Por uma razão incerta, o centro das cidades, as mais antigas principalmente, sempre me encantaram, até do medo das pessoas de irem ao centro. o Umbigo, onfalos, o nascedouro, o berço, não tem jeito, qualquer lugar por onde vá, no Brasil ou fora dele, quero conhecer onde nasceu aquele lugar. Assim faço e não vou parar de ir ao centro, com ou sem medo.
Minha experiência especial com São Paulo completa 30 anos, vim morar em 1989, na época, uma das coisas que fazia nos fins de semana era andar pelo centro da cidade. Conhecer as pessoas e os lugares. Morava na Moóca, sábado pela manhã pegava o trólebus na Avenida Paes de Barros e descia ali ao lado do corpo de bombeiros na Sé. Dali atravessava a Sé e seguia invariavelmente para rua direita rumo à República. Onde almoçava e ia aos velhos cinemas da Avenida Ipiranga.
O começo dos anos de 1990, com fim do famigerado Governo Sarney e seu ministro da fazenda, Maílson da Nóbrega, aquele da inflação de 84,3% ao MÊS, combinado com o início do Governo Collor que roubou a poupança e jogou o Brasil no caos, o cenário da Praça da Sé era de completa miséria, o desemprego era um para cada cinco pessoas na grande São Paulo.
O assombro de miséria retornou ao centro, entre 98 e 2000 com a desvalorização do real e o apagão de FHC, os bolsões de miséria nas ruas e a desesperança generalizada. O que perdurou por longos anos, como um termômetro para mim, de como ia a economia do Brasil. O cenário da Sé, República, tinha melhorado, ano após ano, durante o segundo Governo Lula e o primeiro Governo Dilma, com crescimento econômico, políticas públicas de inclusão, tinha ajudado a mudar essa realidade.
É fato que desde 2015 não temos governo no Brasil, Dilma foi inviabilizada politicamente desde o dia em que foi reeleita. Para piorar ela entregou a condução da economia aos neoliberais e a desastrosa gestão de Levy preparou o terreno para os exterminadores do futuro: Temer-Serra-Meireles e o velho PSDB em peso novamente no governo central, desaguando nos abutres comandados por Paulo Guedes no famigerado DESgoverno de Bolsonaro.
A conturbada reeleição e a impossibilidade de governar de Dilma, sofrendo o golpe de estado, teve reflexo quase imediato, lembro que em 2016 já era crescente a quantidade de pessoas dormindo nas galerias do metrô e do lado de fora da Praça da Sé. O que chamava atenção era que esses tinham celulares, roupas, mobília, o que mostrava que tinham sido expulsos recentemente de suas moradias e/ou empregos.
Desde o início de 2019, esse ano estranho, como membro da Comissão de Direitos Humanos da OAB/SP, passei a ir com mais frequência à sede da Sé, como também atender os chamados desesperados do corres na Cracolândia. A cada ida é um confronto com a realidade, dos valores humanos, da dignidade perdida, daqueles seres sem pátria, sem documentos, sem esperança, apenas recolhendo migalhas e restos, compartilhando as pedras e a alienação.
O centro velho agoniza, a dor e a doença, o caos estão ali. É fratura exposta que de vez em quando o Estado faz sangrar, matar e higienizar a incompetência de não ter saída digna e humana. É jogar para debaixo do tapete e alimentar a ilusão de não existem, as ruas tomadas de trapos, restos de coisas, os homens e mulheres amontoados entre duas ruas escuras, apenas sentem, ou nem sentem mais as dores de mais um dia de terror.
O Golpe “deu certo”, trouxe o Brasil de volta para seu lugar, para seu destino miserável?
O que se vê nas ruas e avenidas da cidade é um amontoado de famílias que até um anos atrás ainda tinham um teto, geralmente alugado, pago com a soma de ganhos de pais, avós e filhos. O desemprego galopante e o corte de milhões de pessoas que recebiam Bolsa-família e outros benefícios sociais, as expulsou de suas casas.
Uma parte desses expulsos, daquelas almas devem ter gritado “fora Dilma”, engrossado o coro e as massas verde-amarelas da Paulista, votado no Bolsonaro. O que deixa o sentimento mais confuso.
Embaixo de viadutos, que antes tinha pequenos contingentes de sem teto, hoje se avolumam dezenas de famílias, vivendo em condições insalubres, com barracas sem nenhuma divisória, em que se faz sexo ou as necessidades fisiológicas elementares. Fogões à lenha queimam panelas com ralo feijão e arroz.
Bem feito? É castigo? Claro que não, pois, parte disso teve a ver com a absoluta incompetência de se comunicar dos governos petistas e de ter delegado à Globo e outros aliados midiáticos menores a tarefa de manipular à vontade, sem nenhum contraponto.
O “controle remoto” como liberdade se mostrou um desastre.
Aquelas pessoas, com olhares perdidos, ainda têm raiva do PT, nem acreditam que foram vítimas de um golpe contra si, não contra o PT. O Estado Gotham City se impôs, sem nenhum pudor, matando sonhos e gentes.
Ali, no centro, aqueles miseráveis, no máximo ouvirão os berros de um pastor voraz por sua alma e seus últimos centavos. O Brasil que ousava “dar certo”, se foi na batida do malhete de um juiz qualquer.
FIM?