“E alcançado o poder, passadas que foram as domésticas tormentas, eles próprios, vencedores, repugnantes se arremessam em guerras, irmão contra irmão, sangue contra sangue, cada um contra si próprio” ( Ricardo III, Shakespeare)
Assistiremos, amanhã, no Senado, o último ato formal da morte da Nova República, mais precisamente , de um período de Democracia, um interregno entre um Estado de Exceção e outro, tão corriqueiro no Brasil. Convido-os a fazermos uma reflexão mais ampla, colocando elementos da Crise geral e adequação do Estado ao novo paradigma, não apenas aqui, mas no mundo inteiro.
O mundo passa por um processo acelerado de grande mutação com a mudança de paradigma do papel do Estado, o legado da grande Crise de Superprodução (Crise 2.0), que explodiu em 2005 nos EUA e 2007 na UE, tornadas públicas respectivamente em 2008 e 2009. A rara combinação de crise simultânea no centro do capitalismo nos remete à crise de 1929, que também gestou um novo Estado, o de bem-estar social.
Essa alteração de qualidade do Estado, que metaforicamente denomino de Estado Gotham City, vinha sendo preparada desde final dos anos 70 e o início dos anos de 1980, com o denominado neoliberalismo de Reagan e Thatcher, ou melhor, com a captura do FED pelo Goldman Sachs, através do Democrata Paul Volker. E no leste com a Perestroika de Gorbachev, os dois movimentos convergiram para a quebra do Estado de Bem-estar Social.
Mas o salto de qualidade, efetivamente, se deu no pós-crise, especialmente nos EUA, a máquina bem azeitada de um Estado forte na estrutura de repressão interna e externa, completamente “autônomo” diante dos governos de plantão, dominado por agências reguladoras perenes, sua burocracia formada pelas classes médias urbanas, com status e riqueza típicas da burguesia.
Hoje, esse novo Estado, quase prescinde de Democracia ou Política, naquilo que preconizou o filósofo italiano, Giorgio Agamben, “Esta transformação é tão extrema que podemos legitimamente perguntar não só se a sociedade onde vivemos é ainda uma sociedade democrática, mas também se esta sociedade pode ser considerada política”.
Agamben, diz mais, sobre as bases que fundam o novo Estado de Exceção (nos países centrais, principalmente nos EUA e na UE), de que é a resultante do medo e da paranoia da Segurança (combate ao terror interno e externo), além do longo processo de Despolitização da sociedade Política. Aqui, sob meu ponto de vista, na América latina, o apelo é o “fim” da Corrupção. Em ambos os casos, a promessa de limpeza do mal, se dará trazendo um mal maior: O fim da democracia.
Uma prova cabal dessa ação, foi a derrubada da PEC 37, ainda no calor de junho de 2013, em que o MP passou a agir em dobradinha com os fascistas, imediatamente saiu do centro o debate das passagens e entrou uma certa “5 causas”, que surgiu aparentemente do nada, mas coincidia com o desejo do Ministério Público na sua luta contra a PEC37, que segundo eles era a PEC da Impunidade.
A facilidade de transformar em bandeira “contra a corrupção” foi espantosa e eficiente, quase ninguém sabe o que era realmente a PEC 37, mas todos aceitaram que ela era dos “corruptos”, dos bandidos, dos políticos. Hoje, se completa, com as famigeradas “10 Medidas contra a Corrupção” do MP, que no fundo se insere no contexto de legitimar o Estado de Exceção, transformando ações ilegais, de “boa-fé”, em provas legais, ou seja, o MP terá poderes excepcionais de definir como e quando processar alguém, uma porta aberta à perseguição ideológica, de acordo com a conveniência do agente público.
Aqui cumpre lembrar que parte da esquerda, com o tradicional moralismo contra a Corrupção, enveredou pelo mesmo caminho reforçando o repúdio, junto aos trabalhadores, da Política e da Democracia. Esquecendo-se que sem elas, não chegaremos a lugar algum, pois as condições de luta e resistência são sempre piores sob Ditadura, abertas ou disfarçadas, inclusive legitimando e apoiando as 10 Medidas, como também não teve coragem de defender a PEC37, por exemplo.
Para além disso, viveremos o cinismo, de que limparemos a sociedade dos “políticos”, mas os beneficiários da tragédia, os tais não-políticos (tem coisa mais política, do que se declarar “não-político”?), terão liberdade para fazerem o que bem quiserem, em especial o judiciário com seus amplos privilégios, sem que a sociedade tenha mais para quem apelar, o poder judiciário viraria executivo e legislativo ao mesmo tempo.
Lembremos ainda que não há juiz eleito, ou MP eleito, ou PF eleito, são frutos de concursos públicos, cujas instituições não aceitam se sujeitar a qualquer controle externo ou transparência de suas ações. A autonomia total é um desastre, que se vira contra a sociedade, ao contrário do que tentam vender. A lógica do Estado de Exceção é não prestar contas a ninguém, dominando a sociedade pela força e pelo poder discricionário.
O Estado de Exceção prescinde de Política e Democracia, não reconhecem esses importantes valores ocidentais. É baseado numa burocracia estatal-privada que comanda a sociedade, tendo o capital financeiro como beneficiário último da tragédia da vida social. Sem democracia, não há vida possível em sociedades tão complexas e desiguais.
É preciso dizer também que, no Estado de Exceção, se exige que a Política e a Democracia passem a ter um papel extremante secundário na vida do cidadão, como consequência, leva irresistivelmente que o judiciário, o MP a terem papeis determinantes no destino do país. A necessidade de imputar como sujas as duas atividades (Política e Democracia), criminalizando-as, torna-se essencial ao jogo da ideologia do Kapital.
Essa visão do Estado, por exemplo, está presente no cenário de eleições americanas, com o embate entre Donald Trump e Hillary Clinton, não podemos entender isso como política, mas a visão de sua falência, um tosco espetáculo, para deleite da burocracia permanente, que terá garantia de seu predomínio sobre a política. A ideologia do Patriot Act Nº 1 se tornou perene, ameaçará o mundo por mais quatro anos, vencendo quem vencer.
A Espanha está a dez meses sem governo, duas eleições gerais sem que se chegue a uma maioria, nem em acordos entres as forças políticas, um quadro de profunda divisão interna. A Itália passou por um longo período sem que se chegasse a nenhuma maioria parlamentar, inclusive com uma abstenção recorde, de quase 40%, além da eleição massiva na plataforma anti-política de Beppo Grillo. A Grã-Bretanha com o fenômeno do #Brexit que derrubou o governo conservador e a pôs para fora da UE, aprofundando o ambiente de crise política interna e da UE.
No ambiente local, o Governo Golpista de Temer, trouxe de forma explícita a agenda do “Novo Estado”, do Estado Gotham City, não precisamos ficar elucubrando o que seria um governo de Direita, alinhado aos interesses dos EUA, agora temos na prática o que realmente querem, sem meio termo. (ver Os Dez Dias Que Abalaram O Brasil)
Isso não significa que Temer-Serra-Cunha serão capazes de implementar qualquer uma dessas políticas, pois a costura política é bem complexa, difícil e sem respaldo de um governo que não teve voto, não expressa o desejo das urnas. Além disso, o ódio criado na sociedade não será pacificado, não existe governo de “salvação nacional” com um ministério tão medíocre e medidas que aprofundam o desemprego e que cortarão amplamente os direitos sociais (ainda que intenções).
Outro ponto de tensão evidente, é como cuidar do poder dado à “república de Curitiba”, o tribunal de exceção gostou da brincadeira, pior, se acha numa ação divina, salvação moral e messiânica do Brasil. Como bem disse Jucá “querem criar uma casta de puros”, bem, esse, já experimentou o poder da casta.
Na verdade essa “casta” é filha direta do modelo das agências e da burocracia perene que hoje domina o Novo Estado, para eles não existe Democracia ou Política, os concurseiros nacionais, os meritocratas de cursinhos, não reconhecem a necessidade de mediação das relações, se aferram na letra fria de leis, ou incorporam valores estrangeiros aos seus postulados e ações.
Essas ações midiáticas, quando olhadas bem de perto, se revelam uma grande fraude e pode arrastar o Brasil para uma ditadura do judiciário, cujos novos capítulos, em breve, poderá não ser só contra o vilão nacional, o PT, mas pode avançar sobre Renan, Temer e qualquer um que achar conveniente. Não há mais a quem recorrer, quando cair o sistema legal.
O Golpe dentro do Golpe é gestado no judiciário. A Democracia é um mero detalhe formal, entramos numa fase de que se terá apenas um simulacro de democracia, com eleições aparentemente livres, mas controladas pelo “medo” de que a qualquer momento, o eleito, possa ser destituído por legislativo e judiciário, basta que perca “popularidade” ou caia em desgraça com a Rede Globo, simples assim.
Adeus, Democracia!