Venho de uma família católica, como boa parte dos lares brasileiros, em especial no século passado, mas também por tradição pouco afeita à igreja, quase sempre comparecendo em dias de festas ou velórios. Os mais devotos tinham ficado na casa dos meus avós que tinha filhos padres, seminaristas e noviças. Por volta da metade dos anos de 1980 completei o meu afastamento da igreja católica, em grande parte pelo caminho trilhado por João Paulo II e seu reacionarismo alimentado por Ratzinger, mas escondido por seu enorme carisma.
A subida de Ratzinger ao papado sob o nome de Bento XVI apenas confirmava que o caminho era sem volta, todo aquele esforço do Vaticano II feito pelos Papas, João XXIII e, em parte, por Paulo VI tinha sido enterrado, a opção pelos pobres, pela igreja da América Latina e a Teologia da Libertação, simplesmente estava acabada, os seus líderes e divulgadores perseguidos, calados pelo silêncio imposto pela Doutrina da Fé, comandada pelo Cardeal Alemão. Para mim aquilo já era quase indiferente, não chegava a afetar a minha vida.
A questão da fé católica, em particular do milagre, já parecia coisa fora de órbita para mim, todas as ações daqueles homens, cada vez mais distantes do mundo e da realidade das pessoas, só reforçavam minha descrença neles e na ICAR. Os escândalos de pedofilia e desmandos internos, com a sempre conivência do alto clero, que a todo custo buscavam abafar, esconder, provavam definitivamente que nem moralmente eles se sustentavam, uma fé e uma prática hipócrita.
O Vatileakes trouxe ao mundo não apenas os desmandos internos da Cúria Romana, mas a também a luta interna de poder, as tramas para dominar a ICAR. A renúncia de Bento XVI e a eleição do Cardeal Bergoglio, argentino, com seus 76 anos, vindo de uma igreja manchada pela relação com a ditadura, levava a crer que seria mais do mesmo, pior, apenas mais um fantoche que duraria pouco enquanto os partidos lutariam por sua futura sucessão.
Minhas análises políticas sobre o Papa Francisco já retificadas aqui (O Surpreendente Papa Francisco), mas agora acho que devo avançar mais um pouco e declarar, o Cardeal Bergoglio é um Milagre, mas não um milagre qualquer, reconhece nele uma verdadeira luz, algo como o “espírito santo”, aquela luz que ilumina a inteligência, a sensibilidade humana. O Papa Francisco não é apenas surpreendente pelas suas palavras, mas é muito mais, ele é testemunho vivo de uma bela mudança na ICAR.
Pode ser que tudo isso se resumirá a ele, depois tudo volte ao mesmo, mas é preciso viver esse momento, esse Milagre, essa transformação de um homem comum no maior Papa da Igreja, pois ele é o homem do seu tempo, de compreensão do mundo, de nosso papel e acolhimento de todas as diferenças, tratando com respeito e dignidade, com um sorriso sincero e cativante.
As verdades e dogmas, obviamente permanecem, a ICAR é milenar, mas ela se abriu para o mundo em 2 anos, como jamais fizera em séculos, isso se deve ao Papa Francisco. Os valores do Vaticano II se tornam vida, no momento mais reacionário do planeta, da vitória esmagadora do Kapital, aparece, de onde poucos esperavam, um homem capaz de dizer palavras como essas: “A concentração monopolista dos meios de comunicação é um colonialismo ideológico” ou “que impôs a lógica do lucro a todo o custo, sem pensar na exclusão social nem na destruição da natureza (…) é insuportável: não o suportam os camponeses, não o suportam os trabalhadores, não o suportam as comunidades, não o suportam os povos…. E nem sequer o suporta a Terra, a irmã Mãe Terra, como dizia São Francisco”.
E mais ainda: “Quando o capital se converte em ídolo e dirige as opções dos seres humanos, quando a avidez pelo dinheiro tutela todo o sistema socioeconômico, arruína a sociedade, condena o homem, transforma-o em escravo, destrói a fraternidade inter-humana, coloca povo contra povo e, como vemos, até põe em risco esta nossa casa comum”, disse o sacerdote.
Por fim, um trecho da exortação Evangelii Gaudium, da lavra do Papa Francisco:
Não a uma economia da exclusão
- Assim como o mandamento «não matar» põe um limite claro para assegurar o valor da vida humana, assim também hoje devemos dizer «não a uma economia da exclusão e da desigualdade social». Esta economia mata. Não é possível que a morte por enregelamento dum idoso sem abrigo não seja notícia, enquanto o é a descida de dois pontos na Bolsa. Isto é exclusão. Não se pode tolerar mais o facto de se lançar comida no lixo, quando há pessoas que passam fome. Isto é desigualdade social. Hoje, tudo entra no jogo da competitividade e da lei do mais forte, onde o poderoso engole o mais fraco. Em consequência desta situação, grandes massas da população vêem-se excluídas e marginalizadas: sem trabalho, sem perspectivas, num beco sem saída. O ser humano é considerado, em si mesmo, como um bem de consumo que se pode usar e depois lançar fora. Assim teve início a cultura do «descartável», que aliás chega a ser promovida. Já não se trata simplesmente do fenômeno de exploração e opressão, mas duma realidade nova: com a exclusão, fere-se, na própria raiz, a pertença à sociedade onde se vive, pois quem vive nas favelas, na periferia ou sem poder já não está nela, mas fora. Os excluídos não são «explorados», mas resíduos, «sobras».
- Neste contexto, alguns defendem ainda as teorias da «recaída favorável» que pressupõem que todo o crescimento econômico, favorecido pelo livre mercado, consegue por si mesmo produzir maior equidade e inclusão social no mundo. Esta opinião, que nunca foi confirmada pelos factos, exprime uma confiança vaga e ingênua na bondade daqueles que detêm o poder econômico e nos mecanismos sacralizados do sistema econômico reinante. Entretanto, os excluídos continuam a esperar. Para se poder apoiar um estilo de vida que exclui os outros ou mesmo entusiasmar-se com este ideal egoísta, desenvolveu-se uma globalização da indiferença. Quase sem nos dar conta, tornamo-nos incapazes de nos compadecer ao ouvir os clamores alheios, já não choramos à vista do drama dos outros, nem nos interessamos por cuidar deles, como se tudo fosse uma responsabilidade de outrem, que não nos incumbe. A cultura do bem-estar anestesia-nos, a ponto de perdermos a serenidade se o mercado oferece algo que ainda não compramos, enquanto todas estas vidas ceifadas por falta de possibilidades nos parecem um mero espetáculo que não nos incomoda de forma alguma.
Não à nova idolatria do dinheiro
- Uma das causas desta situação está na relação estabelecida com o dinheiro, porque aceitamos pacificamente o seu domínio sobre nós e as nossas sociedades. A crise financeira que atravessamos faz-nos esquecer que, na sua origem, há uma crise antropológica profunda: a negação da primazia do ser humano. Criamos novos ídolos. A adoração do antigo bezerro de ouro (cf.Ex32, 1-35) encontrou uma nova e cruel versão no fetichismo do dinheiro e na ditadura duma economia sem rosto e sem um objectivo verdadeiramente humano. A crise mundial, que investe as finanças e a economia, põe a descoberto os seus próprios desequilíbrios e sobretudo a grave carência duma orientação antropológica que reduz o ser humano apenas a uma das suas necessidades: o consumo.
Por mim, não importa o quanto vai durar, mas minha admiração e respeito ao Papa Francisco é imensa, um milagre da fé.