“Mas que espelho tão pífio a quem o observa!
Faz nojo; faz fugir;” ( Fausto – Goethe)
Depois de avançar em algumas questões mais amplas, no texto Humanos, Nós?, mais uma vez volto-me para o microcosmo interno. O que somos nós? O que sabemos de nós mesmos ao nos contemplarmos no espelho? Narciso nos libertou da morte e da paixão pela nossa imagem ou somos prisioneiros do que vemos no espelho? Vamos nos afogar, repetindo o mito, ou simplesmente encarar o que devemos fazer para que nos livremos da nossa torpe vaidade, dos nossos vícios e dos nossos medos.
Tomado por estes pensamentos que, em regra, nos assombra e nos deixa com certo temor de não exagerarmos na dose da avaliação sobre quem somos: Por um lado, nem sendo piedosos demais com nossos erros, por outro, não carregando demais no castigo da alma por sobrevalorizá-los. Buscando o equilíbrio entre os estes dois vetores, para que tenha um resultado mais justo no tribunal de nossa consciência, aquele que é e deve ser mais implacável, o único que tem poder de nos livrar de nossas superstições e principalmente de nossa arrogância.
Creio que desde muito cedo, não tenho precisão da idade exata, que mesmo sendo extrovertido, brincalhão, com integração e interação em casa com meus irmãos e pais, na escola e com amigos de ruas e cidade onde vivi, não era raro fazer reflexões, às vezes bem elementares, simples, mas lembro de que saia de mim, via além do que eu era, percebia como eu era, do que era capaz. Esta coisa não me fazia mal, mas muitas vezes me assustava com o que via em mim, nos outros, nas situações que participava, por não ter feito diferente, assim ou assado.
Também era comum viajar no pensamento, no mundo das possibilidades, reais ou irreais, indo bem além das minhas limitações materiais, de nossos recursos financeiros. Os livros, naquela época, eram meus maiores amigos, a literatura me ajudava a voar pelo tempo, lugares, países e culturas. Então conhecia pessoas, personagens literários ou personalidades da história, chegava a me imaginar como um deles, a ter ambições maiores, definir destinos, participar de grandes eventos, ser reconhecido por algo, em geral, grande e importante.
A vida avança e os pensamentos vão se tornando mais sofisticados (ou não), mas ao mesmo tempo e contraditoriamente, o corpo se torna mais pesado, os pés parecem mais presos no chão à realidade concreta, nos ensinando e ajustando nossos sonhos, ou trocando-os por outros, alguns até mais utópicos (como a Revolução), mas também mais adequados ao que somos, ou como nos tornamos. A dura transição deixa marcas e nos dá grandes lições, a língua mais afiada e o vocabulário mais desenvolvido acabam por nos trair.
Jamais posso reclamar de tudo o que fiz ou por aquilo que passei (passo) na vida, no fundo as coisas foram acontecendo, cada momento se encaixando como deveria ser, nem sempre como achava que seria, pois há grandes diferenças entre o plano e a execução. Em quase toda encruzilhada em que cheguei nos meus caminhos, o sentido escolhido se mostrou proveitoso, nem quero voltar atrás, para mudar o rumo. A intuição de cada época sei respeitar, os erros advindos destas escolhas, quase todos já absorvi e os “paguei” de alguma forma.
Daqueles muitos sonhos de infância, juventude, muitos continuam como sonhos, outros sonhos vieram para me manter vivo, pois não acredito em ninguém que não tenha sonhos, mesmo no extremo do viver, existe sonho, que é o maior alimento da alma, do ser humano. O espelho continua a me assustar, o que é bom, quando ele não me assustar é sinal que fui vencido por ele, pois não poderei mudar mais nada em mim.
Vivemos em metamorfose de sonhos, pelo menos deveríamos viver, ou melhor, sonhar.
Jethro Tull – A Whiter Shade Of Pale
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