Entrei cedo na sala do cinema, com as luzes acesas vou olhando as pessoas que entram para ver “12 anos de Escravidão”. O Cinema, de um shopping de classe média alta, não recebeu um único negro para ver aquela sessão, mesmo no dia “mais barato”. O que não é um mero acaso, pois, passados 173 anos da terrível tragédia do homem livre, feito escravo, Solomon Nortup, os reflexos da escravidão e do apartheid social é fácil de se verificar em várias situações do cotidiano, nas empresas, nos centros comercias e no lazer.
Posso garantir que é o mais cruel e terrível filme sobre escravidão que já vi na minha vida. Nada é escondido ou mitigado, ao contrário, a banalização da crueldade “humana” é mostrada sem máscara. A violência física, psicológica e sexual impostas aos negros escravos na América, tanto do norte, quanto do sul, dificilmente poderá ser apagada, ou esquecida, mesmo que, formalmente, tenha sido abolida a quase 150 anos nos EUA, no Brasil 125 anos, suas marcas estão vivas e visíveis no dia a dia. Os negros continuam sendo cidadãos de segunda classe, com menos oportunidades, com menores salários, com cargos inferiores nas empresas e no estado.
O filme retrata a história de Solomon Northup, um ex-escravos, alforriado, que vive no estado de Nova York como músico, com certa fama, pela sua virtuosidade, o que lhe garante uma vida boa, com casa própria, com sua esposa e dois filhos. Tudo ia bem até ele ser sequestrado e mandado para o sul dos EUA, as regiões mais pobres com a economia baseada na agricultura e totalmente dependente da mão de obra escrava. O regime é de terror, os homens e mulheres amontoados em casas simples, dormindo no chão, sem privacidade nenhuma e as mulheres costumeiramente violadas por seus “donos” ou capatazes.
A produtividade individual na colheita é aferida dia a dia, os homens ou mulheres com pior desempenho são açoitados barbaramente para que melhorem seus desempenhos no dia seguinte, as feridas e as marcas dos chicotes são tratadas por eles mesmos durante a noite. Sob sol escaldante ou frio e com o chicote afiado, os escravos são insultados e apanham para que não parem um minuto sequer do esgotante trabalho, não raro morriam de todos os males possíveis, mesmo mortos ainda recebiam chutes como se estivessem a fingir desmaios.
Aqueles senhores de escravos, no “dia do senhor”, ironicamente liam a Bíblia, principalmente os trechos que tratam da escravidão como se fosse a ordem natural da vida. Mas numa contradição tremenda, pois, para aqueles senhores brancos, os negros era “coisas”, animais como um cavalo, uma vaca ou um cachorro, que poderia ser usada e destruída ao seu bel prazer, por ser sua Propriedade Privada, mas então por que ler a palavra de Deus? Algum sentimento de contrição? Algum arrependimento? Realmente é inacreditável, ou no mínimo inusitado, o apelo a Deus para se cumprir tão grande maldade.
O jovem diretor, o britânico, Steve McQueen ( Shame, Hunger), faz um grandioso filme, intenso, humano, devastador, uma denúncia do que nós, brancos, fizemos de forma tão cruel. Ele filma a dor humana e sua tragédia. Chiwetel Ejiofor e Michael Fassbender têm atuações espetaculares, convincentes e reais, Brad Pitt faz uma interessante ponta no filme. As músicas são belíssimas que, junto com as imagens impressionantes te prendem ao enredo. As tomadas com expressões de dor, de desespero, são poéticas demais,
É um filme que você saí do cinema menor e não apenas com muitas lágrimas, mas com vergonha do presente, pois do passado não se pode mais mudar. A justa reparação, ao que fizemos no tempo tão próximo, como as cotas, as oportunidades, as políticas afirmativas e a busca de igualdade, não é sentimento “religioso”, mas de justiça, de que jamais voltemos à mácula da escravidão, moral, física, sexual ou psicológica.
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