Escrevo muito sobre Gotham city e sobre os “gêmeos”, Batman e Coringa. O par antiético, bem e mal; mocinho e bandido Pela tradição grega o herói não diferencia por ações boas ou más, mas o que representa para sua comunidade. Suas qualidades excepcionais, formação, origem, identidade secreta e seu rito iniciático, são os elementos fundantes do Herói.
Procusto é tão herói quanto Teseu, assim como Polifemo é diante de Odisseus. Nossa mente americanizada, criou essa dicotomia herói/bem e bandido/mal. O ultraliberal Frank Miller, no final dos anos 80, redesenhou Batman e o trouxe para o mesmo campo do Coringa, ambos são fora da lei, agem fora e/ou acima do Estado de Direito. Os elementos centrais são transgressões, ruptura com os padrões sociais e políticos e sistema legal.
Coringa afirma, por exemplo, no Cavaleiro das trevas: “Você e Eu somos foras da lei, não reconhecemos nenhum limite, somos iguais”. o que os diferencia é a visão de mundo, a ilusão de são bons ou maus, mas no fundo, nenhum deles defende as leis, agem fora dela, ele, Coringa, assume sem culpa e isso muda a questão do heroísmo ao estilo americano.
O Novo Coringa traz uma ruptura muito mais profunda, primeiro, esqueçam o majestoso Coringa de César Romero e de Jack Nicholson, ou o icônico Heath Ledger, denso e cínico.
Joaquim Phoenix, supera qualquer interpretação anterior, absolutamente espetacular, incorpora um herói (bandido) de uma forma surpreendente, como o filme consegue ser, de tirar o fôlego, incomoda a cada cena.
A profundidade de cada diálogo a construção de um personagem, que lembra mais teatro, ópera, do que de cinema. A psiquê humana em todas suas nuances.
Situado no final dos anos 70, início de 80, a crise do petróleo e o fim do padrão outro, põe o dólar como centro da economia, e na política econômica, o retorno do liberalismo, em contraposição ao Estado de Bem-estar Social, as políticas sociais, são cortadas de forma cínica.
É dessa virada, o Kapital passa agir diretamente na política, tirando de cena os intermediários, apresentam como candidatos próprios, como forma de continuar o espetáculo, mas não mais dando espaço para políticos tradicionais. É uma antecipação do movimentos que décadas depois, leva o Coringa/Trump, ao governo.
Nesse panorama de ruptura social, de mutação política, surge um personagem que galvaniza a revolta popular, que representa a reação aos novos “políticos” do Kapital, que na aparência estão preocupados com a filantropia, com um Estado que atenda demandas menores, desde que não desafiado, que a onda de desemprego e desagregação social, não podem atrapalhar os salões nobres e a sociedade filantrópica.
O Coringa é mais fundo, ele um arquétipo de uma sociedade das drogas psíquicas, que controlam as pulsações próprias da natureza rebelde humana, quando não mais expostos a elas, emerge o selvagem que nos habita.
A extrema violência não tem nada de gratuita, apenas reflete uma sociedade que namora a barbárie, o sangue é apenas a cor do espetáculo, que surge de um coliseu ou da catarse de Gotham City.
É daqueles filmes que precisam de um texto, mas que abrirá uma longa reflexão a cada vez que se assiste, simplesmente imperdível, sem truques, sem efeitos especiais, apenas o Homem, o grandioso Joaquim Phoenix, ele encarna um momento e faz grande cinema.
PS: Tudo é perfeito, cenários, tomadas, trilha sonora, diálogos, falas, fotografia, uma aula de cinema. Saí-se do cinema aéreo, desesperado para escrever…
Que pena que eu não tenho coragem de ver… agora senti vontade, mas não dá…
Vou assistir essa semana