Consegui ver o filme Hannah Arendt, dirigido por Margareth Von Trotta, estrelado Barbara Sukowa, não quis ir ao cinema quando em exibição, pois é o tipo de filme que a tela não importa, mais ainda, em casa, viria com mais tranquilidade e poderia refletir com certa calma a mensagem, isto era mais intuição do que verdade. Enfim, para mim, se provou melhor ter visto em DVD, pude parar, rever cenas e diálogos, algumas questões mais densas, para melhor absorver a ideia, meu ponto de partida era outro, não apenas ver, mas assimilar questões novas, ou não, de um tema extremamente atual.
Recentemente publiquei no blog uma palestra do filósofo italiano Giorgio Agamben (A Morte da Democracia e da Política?), proferida em Atenas em que inicia dizendo que ali nasceu a democracia, mas que ali também seria sua morte, mas não apenas a Democracia, como também a Política. Há uma proximidade enorme, entre o filme e a palestra, no ponto crucial, os destinos da humanidade e seus valores éticos, ocidentais, a sua construção social, que, ao menor sinal de uma grave crise, suprime liberdades, democracia e política. Ao mesmo tempo, o homem se entrega aos institutos de sobrevivência das cavernas, prevalecendo o mais forte, o mais bruto e o mais radical.
Enfim, tanto num contexto, vivido por Hannah, ou no atual de Agamben, a barbárie é não apenas uma hipótese, mas uma saída viável, quase uma depuração, não importando o preço. A experiência do Nazi-Fascismo parece que não foi suficiente na Europa, nem no mundo, o Estado de Bem-estar social, que saiu vitorioso no pós-guerra, foi solapado nos anos de 1980 e 1990, reproduzindo os velhos cenários de miséria anterior à grande guerra. Nos anos 2000, precisamente na sua segunda metade, explodiu a maior crise do Kapital, desde 1929, o que ajuda a reflorescer o “mal banalizado”.
As hordas neofascistas voltaram com força, algumas com algum tosco disfarce, como na Itália do bufão Berlusconi, outras bem mais direta, como na Grécia, com as milícias do “Nova Aurora” ou agora, mais próximo ainda, no golpe de estado da Ucrânia, em que a força motriz é o neofascimo, com símbolos Nazista ligeiramente modificados, mas com ações muito mais diretas e similares aos seus “pais” alemães, com perseguição aos judeus, às minoria étnicas e aos comunistas. O apoio que os governos europeus e os EUA dão aos golpistas ucranianos é chocante, mas não estranho, a lógica por trás é o fim do Estado, como o conhecemos agora.
O filme de Hannah Arendt traz de volta o assombro do nazismo e como ele penetrou na consciência do homem comum, por trás da ordem, disciplina, tudo será cumprido sem questionamentos ou ponderações. Esta mesma lógica é usada nas grandes empresas, corporações e bancos, pouco importando o caráter nefasto das ordens, o importante é cumprir e “bater as metas”, as consequências não são analisadas, apenas o devido bônus. A conduta militar, ou de Estado, foi trazida para realidade das empresas, das escolas, universidades que funcionam seguindo o um método de “produtividade” do Kapital.
A banalização do mal é a marca de qualquer tempo, em particular nos momentos de graves crises, vale pisar no pescoço alheio para demonstrar mais fidelidade ao “deus kapital”. Pior, as redes sociais, que em tese seriam para mitigar a banalização do mal, construindo relações sociais e humanas em escala global se tornaram porta-vozes da intolerância, do preconceito e dos mais baixos instintos. A visão de Goebels da mentira repetida mil vezes vira verdade, ganhou na internet seu terreno mais fértil, pois em segundos aquela “mentira” gira milhões de vezes e é “verdade” para milhões em minutos. O senso comum é elevado à milésima potência, em tese, para se desmontar um “viral” é tarefa quase impossível. Nunca o “mal”, no sentido filosófico foi tão útil e tão usado no mundo, com uma máquina eficiente de propaganda e ideias.
A lição de Martin Heidegger para Arendt de que “pensar é um ato solitário”, ninguém ensina o outro a pensar é uma questão filosófica das mais difíceis de ser aceita, pois o entendimento do “pensar” é mais amplo do que apenas o de reproduzir ideias e “verdades”, pois isto não é pensar é apenas se tornar ventrículo de outros. A dura reflexão, o estudo paciente exige método, abstração, não importando as milhões de informações muito mais acessíveis no mundo de hoje, contraditoriamente, isto não “ajuda a pensar”. O ato continua individual, de observação e dedicação, o que na tal “modernidade” virou um fardo, melhor apenas reproduzir o senso comum, seguir as ondas e manadas, sem querer ir além, transgredir.
Por fim, nestas primeiras notas sobre o filme, naquele distante julgamento do prisioneiro nazista, Adolf Eichmann, temos elementos da sociedade espetáculo, ali não se julgou o homem, na expressão da própria Hannah Arendt, mas um sistema que transformou homens comuns, em burocratas ciosos do dever a ser cumprido. Duas questões, a primeira, estamos diante da mesma lógica em escala mundial? Com homens comuns cada vez mais obedientes e cumpridores des suas obrigações sem reflexão. Segunda, a tragédia humana, de um burocrata preso, será julgado e punido em forma de espetáculo para manter o “circo funcionando”? O que são os julgamentos espetáculos nos EUA ou aqui no Brasil, como no caso de Mensalão? Busca-se justiça ou diversão?
Como meu tempo é curto, tenho que voltar ao meu lugar-comum de burocrata, do mundo do trabalho, espero voltar ao tema.
Ótima dica!
Voltei pra dizer que obviamente você não estava dando dica de filme. Algumas pessoas ensinam outras a pensar sim, isso acontece desde que o homem olhou o mundo em volta e perguntou ao companheiro o que era aquilo ali atrás da árvore. O problema é que alguns querem ensinar a pensar tout court, outros querem ensinar a pensar igulzinho a eles. A divergência é o sal da vida. Beijos, amado compa.
Fazia tempo q não via Barbara Sukova …. excelente … quis ver no cinema mas tb acho melhor vê-lo de forma mais intimista … pensando.como o mal pode parecer uma ação burocrática … algo q se faz sem pensar…. banal…. a ausência de compaixão… talvez encontro um dia a resposta..