A jovem médica fala alto e firme em meio ao burburinho, acalma a situação caótica entre os refugiados curdos, que respeitam aquela figura forte e carismática. A fama entre eles é que ela é faz milagres, desde quando salvou a vida do garoto que caiu do prédio com instalações precárias, escuras e escorregadias depois da nevasca. A queda do segundo andar deixou uma fratura exposta e parecia que não resistiria, a médica estancou o sangue com o que tinha em mãos, fez manobras de ressureição, com muito cuidado, pois poderia machucar ou quebrar alguma vértebra. O garoto “acorda” e a emergência chega levando-o ao hospital.
Desde então, a Doutora é a verdadeira autoridade naquela comunidade de sonhos perdidos, que tenta se refazer dos horrores da guerra, de séculos de opressão, de apagamento histórico, nessa última agressão tiveram fugir para encontrar um abrigo incerto num país estrangeiro, uma língua estranha, a desconfiança sobre eles e o sonho de uma nação cada vez mais distante.
Aquela mulher de cabelo vermelhos, parece pintados, contrastando com a pele alva, e as sardas no rosto, ela é de pequena estatura, mas cresce e se torna gigante quando fala e prescreve remédios e indicações de saúde, com gesto humano e de afeto, principalmente com as crianças, que servem de tradutores para os pais e avós, pois elas rapidamente aprenderam aquele idioma distante.
A Dra. Lena (Yelena) chega cedo e se vai tarde do pequeno posto de atendimento de saúde, ambulatório, de um velho prédio residencial abandonado da antiga de Berlim Oriental, em Neukölln. Os poucos anos da reunificação formal faz com que as diferenças sejam sentidas, nesse lado da cidade. O posto e atendimento são mantidos pela associação de trabalhadores curdos, que visam manter a cultura do seu povo, especialmente a língua e a música, a integração com a sociedade alemã é bem complexa, combinada com a própria integração das duas cidades. Os refugiados cursos têm medo de sua situação no país, a incerteza de que poderão ficar, mesmo que provisoriamente, para um dia voltarem e unir parte curda da Turquia, Síria e o que sobrar do Iraque arrasado pelas forças dos EUA e OTAN.
A rotina da Dra. Lena, a cabeça de fogo, é dura, cheia de desafios, a barreira da língua, a desconfiança sobre medicina e a intricada cultura curda, trazem mais dificuldades, o episódio do pequeno Osman, o protegido pelas asas, foi fundamental para criar uma relação mais próxima, a Doutora pode chegar mais perto dos seus pacientes, o que aliviou seus próprios medos e temores de que não seria capaz de exercer seu ofício, sua experiência em campos de refugiados, no final dos anos de 1990, não era suficiente, mas ajudavam demais a vencer questões culturais complexas.
Para sua surpresa, uma anciã, quase uma entidade religiosa, conselheira do seu povo, vai para uma consulta, quase como se fosse a conhecer. A idosa pega sua mão, alisa com cuidado, olha nos olhos de lena e diz (se a tradução do neto estiver correta):
“você é uma protetora de gentes, um anjo iazdânis, um amor, Aslan, tocará sua vida em breve, rodopiando como sufistas“.
Lena sorriu enrubescida, fundindo cabelos e rosto como se fosse o próprio fogo.