Arnobio Rocha Mitologia Apolo – O Exegeta Nacional(Nova Versão)

965: Apolo – O Exegeta Nacional(Nova Versão)


Apolo e as Ninfas, de François Girardon (1666-73), na Gruta de Apolo, em Versalhes.

Apolo e as Ninfas, de François Girardon (1666-73), na Gruta de Apolo, em Versalhes.

Algumas vezes comecei a escrever sobre o Deus Apolo, mas sempre de forma inconclusa ou incompleta, a complexidade do deste mito precisa de um longo descrever. Apolo, depois de Zeus, foi o deus mais influente na Grécia, assim como em Roma, um dos poucos deuses que mantém o mesmo “nome” nas duas mitologias. Em certa medida, sabemos muito de Apolo, sem o sabermos, pois a vasta inspiração deste deus levou ao apogeu da Grécia Antiga. Em rápidas palavras, Apolo foi: Engenheiro e Arquiteto, Escultor, Matemático, toda ciência exata, mas ao mesmo tempo médico, curandeiro, além de ser ele aquele que responde aos pedidos em Delfos sobre o futuro, mesmo que forma indireta, daí epíteto Apolo Lóxias (λοξός), ou Apolo Oblíquo.

Apolo reuniu em si vários deuses, suplantando-os ou absorvendo seus cultos, o Febo (luminoso) que no começo seria prateado, lunar, tornou-se ainda maior, pois virou o Sol, tomando de Hélio, o antigo deus, para si a divindade da Luz maior, em todo seu esplendor. Como bem observa Junito de Sousa Brandão : “Apolo pós-homérico vai progressivamente reunindo elementos diversos, de origem nórdica, asiática, egéia e sobretudo helênica e, sob este último aspecto, conseguiu suplantar por completo a Hélio, o “Sol” propriamente dito. Fundindo, numa só pessoa e em seu mitologema, influências e funções tão diversificadas, o deus de Delfos tornou-se uma figura mítica deveras complicada. São tantos os seus atributos, que se tem a impressão de que Apolo é um amálgama de várias divindades, sintetizando num só deus um vasto complexo de oposições”.

E o mestre Junito nos diz ainda que o crescimento da divindade apolínea se deu porque “tal fato possivelmente explica, em terras gregas, como o futuro deus dos Oráculos substituiu e, às vezes, de maneira brutal, divindades locais pré-helênicas: na Beócia, suplantou, por exemplo, a Ptóos, que depois se tornou seu filho ou neto; em Tebas, particularmente, sepultou no olvido o culto do deus-rio Ismênio e, em Delfos, levou de vencida o dragão Píton. O deus-Sol, todavia, iluminado pelo espírito grego, conseguiu, se não superar, ao menos harmonizar tantas polaridades, canalizando-as para um ideal de cultura e sabedoria”.

Apolo, em grego Απόλλων(Apóllon), traz no nome, consoante Junito, várias explicações, como uma corruptela do Dórico Ápella ou Apellaí – Assembleia do Povo, que era como Esparta o via, um Guia, o líder do povo. Rapidamente, Apolo, se torna o “Exegeta Nacional”. Filho de Zeus com Leto(Némesis), tem como gêmea Ártemis, ambos deuses caçadores. Porém, o deus, tem uma longa transformação, do seu mito original, quase como um “primeiro-ministro” de Zeus, tanto no Olimpo, como na Terra. Sua força em toda Grécia o fez ter mais de 200 epítetos, ou ser figurante nos mais diversos mitos e ações humanas.

Temos um Apolo defendendo Orestes, quando este mata Clitemnestra, sua mãe, cessando a lógica de que os crimes de sangue têm de ser vingados. Esta ação será refletida nas leis e proibições do legislador Sólon. Assim descreve Junito: “toda “mancha” produzida por um crime de morte era como que uma “nódoa maléfica, quase física”, que contaminava o génos inteiro. Matando e purificando-se, substituindo a morte do homicida pelo exílio ou por julgamentos e longos ritos catárticos, como foi o sucedido com Orestes, assassino de sua própria mãe, Apolo contribuiu muito para humanizar os hábitos antigos concernentes aos homicídios”[…]não menos importante do deus foi contribuir com sua autoridade para erradicar a velha lei do talião, isto é, a vingança de sangue pessoal, substituindo-a pela justiça dos tribunais. Buscando “desbarbarizar” velhos hábitos, as máximas do grandioso Templo Délfico pregam a sabedoria, o meio-termo, o equilíbrio, a moderação. O gnôthi s’autón, “conhece-te a ti mesmo” e o medèn ágan, “o nada em demasia” são um atestado bem nítido da influência ética e moderadora do deus Sol.

Mesmo não sendo deus da agricultura, ele protege as sementes e a lavoura. Deus dos pastores, em particular dos rebanhos de carneiros, contra os lobos, de onde vem um dos seus mais famosos epítetos, Lício( λύκος). Protetor dos campos, das cidades, mais especificamente das casas, guardião de sua soleira. No mar protege os marinheiros, quando se transforma em Delfim.

Ele é médico, sendo pai de Asclépio, a quem deu a arte da cura, mas ia muito mais além, conforme Junito, “Médico infalível, o filho de Leto exerce sua arte bem além da integridade física, pois é ele um kátharsi (Kathársios), um purificador da alma, que a libera de suas nódoas. Mestre eficaz das expiações, mormente as relativas ao homicídio e a outros tipos de derramamento de sangue, o próprio deus submeteu-se a uma catarse no vale de Tempe, quando da morte de Píton”. Ainda na arte da cura, ele muitas vezes o faz através do “encantamento, da melopéia oracular, chamado, por isso mesmo, pai de Orfeu, que tivera com Calíope, Apolo foi transformado, desde o século VIII a.C, em mestre do canto, da música, da poesia e das Musas, com o título de Museguétes, “condutor das Musas”: as primeiras palavras do deus, ao nascer, diz o Hino homérico (Ap. I, 131-2) foram no sentido de reclamar “a lira e seu arco recurvado”, para revelar a todos os desígnios de Zeus”.

Sua enorme beleza chamava a atenção, amou e foi amado por várias ninfas e mortais, mas nem sempre com felicidade, tendo longa prole e dissabores, mais uma vez recorremos ao grande Junito, para um painel amplo de suas relações amorosas e;ou aventuras sexuais: “Com Talia foi pai dos Coribantes, demônios do cortejo de Dioniso; com Urânia gerou o músico Lino e com Calíope teve o músico, poeta e cantor insuperável, Orfeu. Seus amores com a ninfa Corônis, de que nascerá Asclépio, terminaram tragicamente para ambos, como se verá mais adiante: a ninfa será assassinada e o deus do Sol, por ter morto os Ciclopes, cujos raios eliminaram Asclépio, foi exilado em Feres, na corte do rei Admeto, a quem serviu como pastor, durante um ano. Com Marpessa, filha de Eveno e noiva do grande herói Idas, o deus igualmente não foi feliz. Apolo a desejava, mas o noivo a raptou num carro alado, presente de Posídon, levando-a para Messena, sua pátria. Lá, o deus e o mais forte e corajoso dos homens se defrontaram. Zeus interveio, separou os dois contendores e concedeu à filha de Eveno o privilégio de escolher aquele que desejasse. Marpessa, temendo que Apolo, eternamente jovem, a abandonasse na velhice, preferiu o mortal Idas.

Com a filha de Príamo, Cassandra, o fracasso ainda foi mais acentuado. Enamorado da jovem troiana, concedeu-lhe o dom da mantéia, da profecia, desde que a linda jovem se entregasse a ele. Recebido o poder de profetizar, Cassandra se negou a satisfazer-lhe os desejos. Não lhe podendo tirar o dom divinatório, Apolo cuspiu-lhe na boca e tirou-lhe a credibilidade: tudo que Cassandra dizia era verídico, mas ninguém dava crédito às suas palavras. Em Cólofon, o deus amou a adivinha Manto e fê-la mãe do grande adivinho Mopso, neto de Tirésias. Mopso, quando profeta do Oráculo de Apolo em Claros, competiu com outro grande mántis, o profeta Calcas. Saiu vencedor, e Calcas, envergonhado e, por despeito, se matou.

Pela bela ateniense Creúsa, filha de Erecteu, teve uma paixão violenta: violou-a numa gruta da Acrópole e tornou-a mãe de Íon, ancestral dos Jônios. Creúsa colocou o menino num cesto e o abandonou no mesmo local em que fora amada pelo deus. Íon foi levado a Delfos por Hermes e criado no Templo de Apolo. Creúsa, em seguida, desposou Xuto, mas, como não concebesse, visitou Delfos e tendo reencontrado o filho, foi mãe, um pouco mais tarde, de dois belos rebentos: Diomedes e Aqueu. Com Evadne teve Íamo, ancestral da célebre família sacerdotal dos Iâmidas de Olímpia. Castália, filha do rio Aquelôo, também lhe fugiu: perseguida por Apolo junto ao santuário de Delfos, atirou-se na fonte, que depois recebeu seu nome e que foi consagrada ao deus dos Oráculos. As águas de Castália davam inspiração poética e serviam para as purificações no templo de Delfos. Era dessa água que bebia a Pítia”.

Um dos mais interessantes aspectos do seu mito é como se apodera de Delfos, o centro do mundo, o umbigo (onfalo), local de poder da arte adivinhatória, o local que se cultuava Géia a deusa primeva, o mundo matrilenear ali garantido pela guardiã do templo, um dragão fêmea, Delfine. Depois transformada no dragão Píton, que na verdade era uma serpente, símbolo das forças ctônicas, das potencias telúricas, a terra primitiva de Géia, Apolo, a luz solar, a força Patriarcal, destrona as forças telúricas, das trevas.  Na magistral descrição de Junito, sobre o que seria o culto a Apolo em Delfos:

“Embora ainda se ignore a etimologia de Delfos, os gregos sempre a relacionaram com delphýs, útero, a cavidade misteriosa, para onde descia a Pítia, para tocar o omphalós, antes de responder às perguntas dos consulentes. Cavidade se diz em grego stómion, que significa tanto cavidade quanto vagina, daí ser o omphalós tão “carregado de sentido genital”. A descida ao útero de Delfos, à “cavidade”, onde profetizava a Pítia e o fato de a mesma tocar o omphalós, ali representado por uma pedra, configuravam, de per si, uma “união física” da sacerdotisa com Apolo. Para perpetuar a memória do triunfo de Apolo sobre Píton e para se ter o dragão in hono animo (e este é o sentido dos jogos fúnebres), celebravam-se lá nas alturas do Parnaso, de quatro em quatro anos, os Jogos Píticos” […] De qualquer forma, a presença do deus patriarcal no Parnaso, a partir da Época Geométrica, é confirmada pela substituição de estatuetas femininas em terracota por estatuetas masculinas em bronze”.

A conquista de Delfos, além da clara substituição do mundo matrilinear em decadência, tem um caráter político mais amplo, será amplamente usado no sentido filosófico, que ultrapassa a questão religiosa, por ser oblíquo em suas respostas, cabe ao intérprete o seu melhor entendimento. Assim resume Junito: “De qualquer forma, “Os Oráculos” traduziam a vontade todo-poderosa de Delfos, porque, para todo o mundo grego, Apolo foi decididamente o árbitro e o garante da ortodoxia. Os oráculos délficos são conhecidos por textos literários, particularmente do historiador Heródoto (séc. V a.C.) e por inscrições. Algumas respostas de Lóxias, sobretudo as mais antigas, redigidas em hexâmetros datílicos, ficaram célebres por causa de seu sentido obscuro e ambíguo.

Sirva de exemplo a resposta do Oráculo ao famoso rei da Lídia, Creso (séc. VI a.C.), que, em guerra contra Ciro, rei da Pérsia, interrogou a Pítia a respeito da “destruição de um grande império”. A Pitonisa respondeu com absoluta precisão: Se Creso cruzar o rio Hális, destruirá um grande império. O império destruído não foi o de Ciro, como supunha Creso, mas seu próprio reino. O deus não mentiu, mas a resposta foi terrivelmente ambígua. A respeito dessa particularidade do Oráculo de Delfos, vale a pena mencionar o fr. 247 de Heráclito: “O deus soberano, cujo oráculo está em Delfos, nem revela, nem oculta coisa alguma, mas manifesta-se por sinais”. Ou seja: Apolo não esconde a verdade, apenas faz que se lhe compreenda a vontade“.

A grandiosidade de Delfos é que servia de unidade nacional, mesmo as  dissensões internas na Grécia, tinha no oráculo uma local de respeito e que todas cidades-estados se encontravam no respeito ao “espírito grego“. Platão, no seu livro República, explica quais os principais  os deveres de um verdadeiro legislador, primeiro peça ao deus  Apolo que os guie para criar as leis do Estado, porque “esse deus, exegeta nacional, intérprete tradicional da religião, se estabeleceu no centro e no umbigo da Terra, para guiar o gênero humano”.

(Publicado Originalmente em 16 de Agosto de 2012)

 Save as PDF

4 thoughts on “965: Apolo – O Exegeta Nacional(Nova Versão)”

  1. “A conquista de Delfos, além da clara substituição do matriarcado em decadência, tem um caráter político mais amplo,…”.Seu texto está ÓTIMO ! Contudo, se me permite e por lembrança a Junito de Souza Brandão, por favor, na sua linha acima: “matriarcado”, por: matrilinear. Cordiais Saudações, José Álvaro Baptista

Deixe uma resposta

Related Post