Arnobio Rocha Mitologia Aquiles – O Herói por Excelência

Aquiles – O Herói por Excelência


 Príamo aos pés de Aquiles - Joseph Wencker (1876)

Príamo aos pés de Aquiles – Joseph Wencker (1876)

 

“Canta, ó deusa, a ira funesta de Aquiles Pelida, ira
que tantas desgraças trouxe aos Aqueus e fez baixar ao Hades
muitas almas de destemidos heróis, dando-os a eles mesmos
em repasto aos cães e a todas as aves de rapina: cumpriu-se
o desígnio de Zeus, em razão da contenda, que, desde o início,
lançou em discórdia o Atrida, príncipe dos guerreiros,
e o divino Aquiles”.
(Ilíada, Canto I, Homero)

A Ilíada, a grande obra de Homero, é dedicada ao seu principal Herói, ou, como a conhecemos, “A Ira de Aquiles”. O filho do  Rei da Ftia, Peleu e da Deusa Marinha, Tétis, cumpre todos os passos e rituais dos heróis míticos, tão bem definidos no mundo grego, mas que se aplica a qualquer cultura, em qualquer tempo. No nosso trabalho A Questão do Herói, inspirado e guiado pelo mestre Junguiano, Junito de Souza Brandão, que novamente nos ajudará neste artigo sobre o maior herói grego, Aquiles.

Usaremos o mesmo método de caracterização para identificarmos o herói: Seu nascimento conturbado, às vezes a sua própria concepção, depois sua Formação Iniciática, a sua Educação, seu Preceptor, Sua Honra e Excelência. Seus feitos heroicos que o tornam a referência de sua gente, sua aldeia, cidade ou do país. Seus epítetos e identidade secreta, que também é parte de sua iniciação. As contradições de seus atos, as ações desmedidas e por fim sua morte, quase sempre trágicas, sua dokimasía, o seu “conjunto de provas” final.

Peleu, filho de Éaco e Endeis, foi treinado e preparado para ser Rei e guerreiro pelo mais famoso preceptor do mundo grego, o Centauro Quíron, de que se torna amigo para sempre, seu conselheiro não apenas na formação guerreira e moral, mas também o ajuda a “conquistar” a deusa marinha, Tétis. Com os ardis de Quíron, que sabia das várias metamorfoses da filha de Nereu, aproveitou quando ela virara verga, Peleu, usando de toda sua força a sufocou até dominá-la, aceitando ser esposa do jovem guerreiro, rei da Ftia (Tessália).

O Casamento não era feliz, não foi por amor ou consentimento, Peleu e Tétis tiveram seis filhos e a todos matara tentando torná-los imortais. Há duas variações de como Tétis agia para fazê-los indestrutíveis: a primeira era de que os temperava no Fogo, a segunda tese era de que ela os mergulhava no rio infernal, o Rio Estige, pois ao ser mergulhado, nestas águas, qualquer um tornava-se invulnerável. Ao nascer o sétimo filho, Peleu interveio e tomando-o das mãos da mãe, o segurou pelo calcanhar, temperando-o no fogo, ou mergulhando-o no Estige, o corpo ficou invulnerável, exceto o calcanhar. Com ódio de Peleu, Tétis abandonou o marido e volta a sua morada no mar, mas será “protetora” de Aquiles.

Aquiles, de quem se dizia antes de nascer, que o filho de Tétis seria mais forte e poderoso que seu pai, o que fez com que Zeus e Posídon não violassem Tétis, mesmo que a desejassem, se afastaram dela. Peleu entrega o filho para que o centauro Quíron o prepare para a arte da guerra e que tenha uma Educação completa nas demais artes. A força descomunal do jovem já chamava atenção desde muito cedo, o que no futuro, graças as lições do grande Preceptor, o tornará famoso e temido. Mas a Moîra, seu destino, estava traçado que perecerá jovem.

Quando da preparação da guerra contra Tróia, a consulta do oráculo dizia que somente com a presença de Aquiles, os gregos, lograriam sucesso na invasão à cidade de Ilion. Segundo Junito “Não foi fácil convocar alguns dos chefes e heróis indispensáveis para a vitória dos Aqueus. É o caso, entre outros, de Aquiles, sem cuja presença, consoante a profecia de Calcas, Tróia não poderia ser conquistada. É que o herói fora escondido pela própria mãe, Tendo ciência de que o fim de Tróia coincidiria com a morte do filho, Tétis vestiu-o com hábitos femininos e o conduziu para a corte do rei Licomedes, na ilha de Ciros, onde o herói passou a viver disfarçado no meio das filhas do rei, com o nome de Pirra, isto é, ruiva, porque o herói tinha os cabelos louro-avermelhados. Sob esse disfarce feminino, Aquiles se uniu a uma das filhas do rei, Deidamia, e deu-lhe um filho, Neptólemo, o mesmo que, mais tarde, tomará o nome de Pirro“. Aqui mais um ítem fundamental do Herói, a identidade secreta, no cado de Aquiles, Pirro, Pirra, também conhecido como o Pelida (por ser filho de Peleu).

A grande gênese do herói, de caráter nacional, depois para o mundo e por toda a eternidade se dará justamente nesta busca dos gregos para que participe da guerra. Continuemos com a magnífica exposição de Junito, deste momento decesivo para Aquiles e sua dimensão heroica, diz ele,  que “Tendo conhecimento do esconderijo do filho de Tétis, Calcas o revelou aos Atridas, que enviaram Ulisses e Diomedes para buscá-lo. Mesmo assim o maior dos heróis aqueus teve uma oportunidade de escolha, pois Tétis preveniu o filho do destino que o aguardava: se fosse a Tróia, teria uma fama retumbante, mas sua vida seria breve; se, ao contrário, ficasse, viveria por longo tempo, mas sem glória. Aquiles escolheu a vida breve e gloriosa. O historiador latino, Caio Salústio Crispo (86 – ~ 35 a.C.), muitos séculos depois, ainda faria ecoar a opção de Aquiles: … et quoniam uita ipsa, qua fruimur, breuis est, memoriam nostri quam maxume longam efficere… (De Coni. Cat., 1, 3): “e, já que a vida que desfrutamos é breve, devemos fazer por deixar de nós a mais longa memória”. E Marco Túlio Cícero (106-40 a.C.) parece ter-lhe completado o sentido: Breue enim tempus aetatis satis longum est ad bene honesteque uiuendum (De Sen., 19,70): “Curto, na verdade, é o tempo de nossa vida, mas é bastante longo para se viver bem e honradamente”.

Resolvida a questão, Aquiles e seus Mirmidões, os Vermelhos, formaram a linha de frente da expedição, a presença do grandioso herói amedrontava os adversários. As grandes adversidades do longo cerco à fortaleza de Príamo, os heróis, reis e guerreiros, estavam cansados, os troianos  estavam confinados na última fortaleza, mas os gregos não conseguiam tomar a cidade. A saída para alimentar o espírito guerreiro eram as pilhagens aos reinos próximos aliados de Tróia.

Numa destas expedições os guerreiros tomam o templo de Apolo, cuidado por Crises, cujas filhas, Criseida e Briseida eram extremante belas. Aquiles, como o principal herói toma-a para si, a outra irmã, fica com Agamêmnon, o irmão de Menelau, que era o Comandante-em-chefe da federação grega. Calcas, aconselha ao líder que devolva a virgem Criseida, pois fora dedicada ao Deus Apolo, para que não traga má sorte aos gregos, é melhor que ele não viole a jovem e a devolva ao seu pai. Agamêmnon, a contragosto a devolve, mas manda que tragam para ele, Briseida, afrontando a honra de Aquiles. Este é o pano de fundo do nono ano descrito na Ilíada, o começo da queda de Aquiles, sua ira funesta.

Aquiles depois de humilhado pela arrogância de Agamêmnon retira-se para as naus dos Mirmidões, deixando o campo de batalha. Rapidamente os troianos se empolgam e volta a lutar nos areais de frente a sua fortaleza, com todo vigor vão impondo derrota atrás de derrota aos gregos, até expulsá-lo para os navios. Desesperadamente, Agamêmnon, manda uma embaixa à nau de Aquiles, entregando-lhe presentes e a própria Briseida. Mas Aquiles fica irredutível, não disposto a voltar ao campo de batalha, mais um sinal da contradição do herói, que tendo sua Honra atingida, não retrocede.

Junito nos ajudará descrevendo os atos finais, depois da embaixada “Aquiles permitiu que seu fraternal amigo Pátroclo se revestisse de suas armas, mas somente para repelir os Troianos. Pátroclo foi além dos limites, além do métron: quis escalar as muralhas de Tróia e foi morto por Heitor. Somente a dor imensa pela morte do amigo e o desejo alucinado de vingança fizeram o herói, após receber todos os desagravos por parte do comandante dos Aqueus, voltar à cruenta refrega e não descansou enquanto não matou Heitor. Assim, a partir do canto XVIII da Ilíada, a figura de Agamêmnon se ofuscou diante dos lampejos do escudo e dos coriscos da espada de Aquiles”.

A cena final da Ilíada é a volta dos maiores valores do Herói, o Rei Príamo, velho e doente vai ao acampamento grego, pedir pelo corpo de seu filho, Heitor, morto por Aquiles em combate singular entre os maiores heróis dos dois lados da guerra. A grandiosidade do diálogo entre os dois se constitui num momento único da literatura, do heroísmo e da natureza humana. Ali os dois homens se encontram, um velho e humilhado, se dobra aos joelhos, em gesto penitente, apela para honra do grande Herói, que Heitor era como Aquiles, portanto merece as mesmas homenagens depois de morto.

Súplice roga: “Lembre-te, ó Pelides,
O idoso pai, como eu posto à soleira
Da pesada velhice. Por vizinhos
Talvez opresso, defensor não tenha;
Vivo ao menos te sabe, e folga e espera
Ver tornar cada dia o egrégio filho.
Ai! Gerei tantos bravos na ampla Tróia,
Dos quais eu penso que nenhum me resta.
Cinqüenta ao vir o assédio, eram de um leito
Dezenove, os demais de outras mulheres:
Morte nos tem segado quase todos.
O único esteio nosso, pela pátria
A combater, acabas de roubar-mo,
Heitor… Venho remi-lo à frota Argiva
Com magníficos dons. Respeita os numes;
Por teu bom pai, de um velho te apiades:
Mais infeliz do que ele, estou fazendo
O que nunca mortal fez sobre a terra:
Esta mão beijo que matou meus filhos.

De Peleu mais saudoso, o herói suspira,
Pega-lhe a destra e brando afasta o velho:
Um de joelhos por Heitor pranteia;
Outro chora seu pai, chora a Patroclo:
De ambos o soluçar na tenda estruge.
Desafogada em lágrimas a pena,
Ergue-se da cadeira o divo Aquiles,
Por si levanta a Príamo, e o compunge
Branca a régia cabeça e branca a barba:
“Ai mísero, sobejo hás padecido!
E a mim que te privei de extremos filhos,
Buscas sozinho? Entranhas tens de ferro.
Senta-te; ao luto agora devemos tréguas.
Viver sempre em tristeza é lote humano:
Existir sem cuidados é dos deuses.
Há dois tonéis ao limiar de Jove
De males e de bens: se misturados
Os derrama o Tonante, o que os recebe
Ora sofre e ora goza; mas, se entorna
Somente males, em penúria o triste
Vaga de pesadume em pesadume,
Dos imortais ludíbrio e dos mundanos.
Assim teve Peleu mil dons celestes,
Brilho, opulência, império e uma deidade
Por consorte; mas Júpiter negou-lhe
Ao trono sucessor, porque imaturo
Devo longe acabar, sem que de arrimo
Lhe seja na velhice, em Tróia estando
Para desgraça dela e teu flagelo.
Também lograste já de quanto abrange
Lesbos ao sul, de Macaris morada,
A Frígia eoa e amplíssimo Helesponto;
Brilhaste, velho, em filhos e riquezas;
Mas, dês que o Céu mandou-te a crua guerra,
Geme Ílio de matança e horror cingida.
A alma em luto perpétuo não consumas;
Com te afligir Heitor não ressuscitas;
Quiçá maiores danos te ameaçam.”

Assim finda a Ilíada. Aquiles devolve o corpo de Heitor ao seu velho pai, uma reconciliação completa com sua Honra e Excelência.  Segundo os “Poemas Cíclicos”, e seguindo o que Junito nos diz que “Aquiles, cujo destino estava traçado, foi morto ingloriamente por uma flecha disparada por Páris, que, escondido atrás da estátua de Apoio, o alvejou. A flecha, guiada pelo deus, atingiu o herói na única parte vulnerável do corpo, o calcanhar direito”.

As lições de Aquiles são variadas, suas características pessoais repercutem em todos os heróis posteriores, ou melhor, ele passa a ser visto como o Herói por Excelência, o verdadeiro modelo de herói. A Ilíada, segundo Paul Mazon, citado por Junito, diz que é “o primeiro ensaio de uma moral de honra”.  Continua Juninto “Apesar das palavras terríveis de Zeus acerca do ser humano: “Nada mais desgraçado que o homem entre todos os seres que respiram e se movem sobre a terra”, (Il. XVII, 446-447) os gregos homéricos, sabedores de que o além que se lhes propunha eram as trevas e o nada, fizeram desta vida miserável a sua vida, buscando prolongá-la através da glória que a seguiria. Complementa Paul Mazon que “O amor à vida torna-se, por isso mesmo, o princípio e a razão do heroísmo: aprende-se a colocar a vida num plano muito alto para sacrificá-la à glória, que há de perpetuá-la. Aquiles é a imagem de uma humanidade condenada à morte e que apressa esta morte para engrandecer sua vida no presente e perpetuar-lhe a memória no futuro”.

Sempre seguindo os passos de Junito, na busca de uma compreensão mais ampla do Mito de Aquiles, ele aponta que “Da mesma forma, certos momentos da lenda de Aquiles podem ser interpretados como provas iniciatórias: ele foi criado pelos Centauros, isto é, foi iniciado na savana por Mestres mascarados ou que se manifestavam sob aspectos animalescos; suportou a passagem pelo fogo e pela água, provas clássicas de iniciação, e chegou inclusive a viver entre as moças, vestido como uma delas, seguindo um costume específico de certas iniciações arcaicas de puberdade”. E ainda que “Observando-a mais de perto, nota-se que a beleza e a bravura de Aquiles podem ser empanadas física e moralmente por caracteres monstruosos: um herói aparece igualmente e com muita freqüência sob forma anormalmente gigantesca ou como baixinho”. (…) “O gigantismo, porém, não é específico do principal herói grego: a altura, ou melhor, a “altitude” de Aquiles era de cinco metros e noventa e quatro centímetros!”.

O calcanhar, seu único ponto vulnerável, é, antes de tudo, a vulnerabilidade da alma, nosso ponto último da existência carnal, de que não poderemos fugir, para que se faça cumprir nossa Moîra, nosso destino, não seria diferente ao grande Aquiles. Há tantas coisas ainda a dizer sobre o mais nobre dos Heróis, mas este painel já se tornou por demais longo, mesmo que não completo, tenho certeza que mostra a real dimensão do maior entre todos os heróis.

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