Arnobio Rocha Mitologia Teogonia I – Deuses Primevos

Teogonia I – Deuses Primevos


Crono, devorava os filhos com medo de perder o Poder (Francisco Goya)

“Pelas Musas e pelo golpeante Apolo
há cantores e citaristas sobre a terra,
e por Zeus, reis. Feliz é quem as Musas
amam, doce de sua boca flui a voz”.

(Teogonia – Hesíodo – Tradução de Jaa Torrano)

A Teogonia é uma obra tão perfeita e completa que, junto com a Ilíada e a Odisseia, pode-se afirmar que são os mais importantes documentos sobre os deuses e costumes da Grécia Antiga. O poeta Hesíodo, com certeza compilou de forma magistral num poema toda a cosmogonia da Grécia. A verdadeira árvore genealógica dos deuses, heróis e mitos, com imensa sutileza e dando-lhe definições precisas sobre eles, o que facilitará a análise futura sobre os arquétipos.

As definições são saborosas e brotam aos montes pelo maravilhoso texto, esqueçam o discurso indireto e rebuscado, a tradução maravilhosa de Jaa Torrano, consegue captar os epítetos e a sensualidade dos personagens, assim como a força e raiva de cada um. “Crono,  de curvo pensar”, mesmo com diferença no radical da palavras, apenas uma aproximação, o tempo(crono) é curvo, a poesia e ciência se encontram. Estes homens geniais, Homero e Hesíodo, cantores populares de prodigiosa memória, espalhavam seus versos pela Grécia e até hoje nos encantam.

 As expressões e aproximações das funções dos deuses são tão precisas que nos espantamos ao ler os versos ,

Zeus porta-égide, a soberana Hera
de Argos calçada de áureas sandálias,
Atena de olhos glaucos virgem de Zeus porta-égide,
o luminoso Apolo, Ártemis verte-flechas,
Posídon que sustém e treme a terra,
Têmis veneranda, Afrodite de olhos ágeis,
Hebe de áurea coroa, a bela Dione,
Aurora, o grande Sol, a Lua brilhante,

Ora, cada deus ou deusa com seu complemento, Atenas de olhos glaucos( a Coruja),  o Luminoso Apolo(Sol), Posídon, o oceano e mares, que, para época, sustentava a terra e a fazia treme. É uma coleção perfeita, que se encaixa a cada verso. O hino inaugural às musas, é uma técnica que será repetida muitas vezes nos clássicos.

 

Os deus primevos, (Caos, Terra, Tártaro e Eros), representando o bing bang ou Gênesis, são assim descritos: do Caos surgiu a Terra de amplo seio, fonte de alimentação e vida, o Tártaro, os confins do mundo, ou o abismo final, até onde se podia chegar.  Por fim Eros, o amor e a beleza, pois sem ele nada se reproduz.

Sim bem primeiro nasceu Caos, depois também
Terra de amplo seio, de todos sede irresvalável sempre,
dos imortais que têm a cabeça do Olimpo nevado,
e Tártaro nevoento no fundo do chão de amplas vias,
e Eros: o mais belo entre Deuses imortais,
solta-membros, dos Deuses todos e dos homens todos
ele doma no peito o espírito e a prudente vontade.

 

E assim desfila a auto reprodução, Caos gera Érebos e a Noite. Da Noite unida em amor a Érebos, nasceram  o Éter e o Dia. A Terra pariu igual a si mesma o Céu, interessante pois há vários mitos e origens ( Gaia, Geia, Terra),  De Céu(Urano) em amor com a Terra, ampla linhagem de filhos/Deuses. As Montanhas

Do Caos Érebos e Noite negra nasceram.
Da Noite aliás Éter e Dia nasceram,
gerou-os fecundada unida a Érebos em amor.
Terra primeiro pariu igual a si mesma
Céu constelado, para cercá-la toda ao redor
e ser aos Deuses venturosos sede irresvalável sempre.
Pariu altas Montanhas, belos abrigos das Deusas

E pariu a infecunda planície impetuosa de ondas
o Mar, sem o desejoso amor. Depois pariu
do coito com Céu: Oceano de fundos remoinhos
e Coios e Crios e Hipérion e Jápeto
e Teia e Réia e Têmis e Memória
e Febe de áurea coroa e Tétis amorosa.
E após com ótimas armas Crono de curvo pensar,
filho o mais terrível: detestou o florescente pai.

Toda esta linhagem de deuses, a reprodução, miticamente, era feita numa união em que os parceiros possuíam os dois sexos, ou paria sem a necessidade do “outro”. Até Crono, decepar o pênis do Pai( Céu – Urano), dele jorrar no mar esperma(espuma, aphros) e dali, em Chipre, surgir Afrodite, a deusa do Amor, da reprodução sexuada, do prazer carnal. A separação plena do sexo, e a obrigação de que se unissem em “amor” para gerar novas crias. Platão é um dos primeiros a separar esta dualidade, Amor Fraternal (Eros) vs Amor Sexual (Afrodite), encontramos em Hesíodo à perfeição desta separação:

“Deusa nascida de espuma e bem-coroada Citeréia
apelidam homens e Deuses, porque da espuma
criou-se e Citeréia porque tocou Citera,
Cípria porque nasceu na undosa Chipre,
e Amor-do-pênis porque saiu do pênis à luz.
Eros acompanhou-a, Desejo seguiu-a belo,
tão logo nasceu e foi para a grei dos Deuses.
Esta honra tem dês o começo e na partilha
coube-lhe entre homens e Deuses imortais
as conversas de moças, os sorrisos, os enganos,
o doce gozo, o amor e a meiguice”.

 

As várias linhagens dos deuses primevos são lindamente retratadas nos primeiros cantos, construindo um painel inacreditável de sentido lógico e mítico. Senão a Noite, poderia parir a Morte, a Sorte, os Sonhos, Escárnio e Miséria. Ao anoitecer, aqueles homens não teriam certeza de um novo dia viria, todos os temores e medos estaria nela concentrados, além do infortúnio, do destino.

Noite pariu hediondo Lote, Sorte negra
e Morte, pariu Sono e pariu a grei de Sonhos.
A seguir Escárnio e Miséria cheia de dor.
Com nenhum conúbio divina pariu-os Noite trevosa.
As Hespérides que vigiam além do ínclito Oceano
belas maçãs de ouro e as árvores frutiferantes
pariu e as Partes e as Sortes que punem sem dó:
Fiandeira, Distributriz e Inflexível que aos mortais
tão logo nascidos dão os haveres de bem e de mal,
elas perseguem transgressões de homens e Deuses
e jamais repousam as Deusas da terrível cólera
até que dêem com o olho maligno naquele que erra

 

O Mar, Nereu e poesia, os filhos e descendentes de um povo com amplo contato com o mar, com suas viagens e sonhos, dali nasci as grandes histórias, reais ou fantasiosas, até os nomes são poéticos e se encaixam perfeitamente aos fenômenos, os acidentes geográficos, os marcos do conhecimento e extensão do alcance grego

O Mar gerou Nereu sem mentira nem olvido,
filho o mais velho, também o chamam Ancião
porque infalível e bom, nem os preceitos
olvida mas justos e bons desígnios conhece.
Amante da Terra gerou também o grande Espanto
e o viril Fórcis e Ceto de belas faces
e Euríbia que nas entranhas tem ânimo de aço.

De Nereu nasceram filhas rivais de Deusas
no mar infecundo. Dádiva de belos cabelos
virgem do Oceano, rio circular, gerou-as:
Primeira, Eficácia, Salvante, Anfitrite,
Doadora, Tétis, Bonança, Glauca,
Ondaveloz, Gruta, Veloz, Marina amável,
Onidéia, Amorosa, Vitória de róseos braços,
Melita graciosa, Portuária, Esplendente,
Dadivosa, Primeira, Portadora, Potente,
Ilhéia, Recife, Rainhaprima,
Dádiva, Onividente, formosa Galatéia,
Eguaveloz amável, Égua-sagaz de róseos braços,
Pega-onda que apazigua no mar cor de névoa
facilmente a onda e o sopro de fortes ventos
com Aplana-onda e Anfitrite de belos tornozelos,
Ondeia, Praia, a bem-coroada Rainhamarina,
Glaucapartilha sorridente, Travessia,

O Céu, as estrelas, planetas, constelações, os astros são magicamento paridos e gerados pelos deuses primevos, claro que a visão é do homem, da Terra, e o Sol nasci depois da própria Terra, assim com a lua, a aurora.

Téia gerou o grande Sol, a Lua brilhante
e Aurora que brilha a todos nós sobreterrâneos
e aos Deuses imortais que têm o céu amplo,
gerou-os submetida a Hipérion em amor.
Euríbia unida a Crios em amor gerou
divina entre Deusas: o grande Astreu, Palas
e Perses distinto de todos pela sabedoria.
Aurora gerou de Astreu ventos de ânimo violento,
Zéfiro clareante, Bóreas de veloz caminhada
e Notos, no coito amoroso a Deusa com o Deus,
e após aurorante pariu a Estrela da Manhã
e os astros brilhantes de que o céu se coroa

 

As diversas formas e deuses que representam o Sol, vão se transmutando com o tempo na mitologia e na cosmogonia grega. As funções celestes, depois as espirituais ou apenas da luminosidade. Teía, pariu Sol, unica Hipérion, que é uma forma de representação do próprio Sol. Todos eles, na próxima geração dos Deuses, a do Olimpo, serão fundidas, em Apolo, o sincretismo religioso, faz que deuses menores, cultuados em cidades, ilhas, sejam absorvidos por novas divindades, mais amplas e complexa.

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